quarta-feira, agosto 31, 2005

Entardeceres no rio

Deixou cair a cabeça sobre o tampo da mesa, fechando os olhos a essa aguarela sobre o rio. Ele, eu, a ver. - Diz-me uma razão. Ele, eu, a ver, calado. -Diz-me uma razão. Ela não disse, claro. O texto é meu, o argumento também, a vida é dela, os dois de costas voltadas. -Vou-te contar uma história. É terrível, o logro. Onde houver um ser assemelhado a uma humanidade, mesmo que esconsa, basta dizer esta frase para que a volumetria, a massa, dê de si. Ela deu, olhou-me: -Adorava que me contasses uma história. Revistei todo o baú das minhas memórias à pressa, estava metido num sarilho. Não tinha nenhuma história. Disse aquilo por dizer e agora ela estava ali a cobrar-me a insensatez. Insistiu: - Se me contares uma história eu suspendo o voo de pelicano sobre este rio.- Comecei a suar. Tinha ouvido falar de uma tortura antiga em que o resgate de uma vida era o castigo de falar, de falar incessantemente. No fim da fala, a morte. Desta vez não era a minha morte, era a dela. Era terrível. -Queres fazer de mim um pelicano? Um sonho de ícaro? Não, claro que não queria. Quanto mais urgente era falar mais o vazio me apertava todos os nódulos do pensamento. - Vais-me deixar morrer assim? Abanei a cabeça. Não podia estar a acontecer aquilo. Eu, o contador de histórias, secara diante da minha amiga a quem jurara um dia, teríamos doze, treze anos, que seríamos imortais. - Se te atirares eu vou atrás de ti. - Isso não é uma história, é uma chantagem.De repente iluminei-me. Ela queria evitar a dor de carpir a sua própria morte. Disse, furioso: - Era uma vez um pássaro-suicidário. - Era um pelicano?. - Era um pelicano que viera do sul. Falava com sotaque. Falava de ideias como liberdade, solidariedade, fraternidade com um sotaque cerrado. - Percebia-se? - Percebia-se que ele vinha do sul. - Mas percebia-se o que ele dizia? - Não, claro que não. Nunca ninguém ouviu um pelicano falar. Nem mesmo La Fontaine. Ela voltou novamente a descair a cabeça sobre o tampo da mesa. - Sabes uma coisa? - Diz... - Se um dia tiver um irmão quero que seja como tu. - Obrigado. - E tu? - E eu o quê? - Quererás que eu seja tua irmã? - Não. - Não? - Não. - Não? Só não? Não explicas? - Não quero que sejas minha irmã. - Ok, isso eu já percebi. - Então o que queres mais? - Quero que me contes tudo. - Não tenho tudo para te contar. Nem nada. Doi-me a cabeça. Estive a trabalhar até muito tarde. - Tu achas que eu já não me mato, é? Estás na maior, hein? - Não é isso. - É. - Não é. - É. - Prova! - Não provo nada. - Prova. - Doi-me a cabeça. - Não podes comprar tudo o que vês. - Lembro-me que uma vez esmigalhámos o trigo em frente à nossa casa. Lembras-te?. [Ela não me respondeu. Aproveitou a pausa, o momento em que me virei para pedir a conta, para se lançar no vazio. Do pelicano mais não se soube.]

1 comentário:

blimunda disse...

o pelicano, essa ave estranha e de quem dizem rasgar o peito e alimentar os filhos com o próprio sangue quando a escassez de alimento lhes assola a vida. às vezes somos mais ele do que desejaríamos, claro.

a vida dói.