quarta-feira, novembro 16, 2005

Post ressentido

O meu post O Homem Ressentido teve um comentário que me chamou a atenção para o eventual ressentimento que animaria o próprio post. Ora não há sentir que me desanime tanto como o ressentimento. E principalmente o próprio. Quero por isso analisar e expôr os motivos que tenho para achar deprimente a ideia de ter Cavaco e Silva como Presidente da República. Talvez por aí se dê para perceber se há ou não ressentimento e, se o houver, pelo menos a assinalá-lo de forma a que ele não contamine quem por aqui passa. Contra o ressentimento, é um lema que faço comum, então. A primeira razão é a de que Cavaco e Silva se impôs sempre pela via da ausência de diálogo, da crispação máxima. Podem dizer que é um fait divers mas a imagem dele a enfiar bolo rei na boca para não responder aos jornalistas parece-me tão infantil como a que tenho de mim mesmo quando fui a casa buscar algodão para os ouvidos para, ostensivamente, não ouvir a maria joão dizer-me que a mocha não gostava de mim. Só que eu tinha doze anos, era um puto, tinha um complexo de inferioridade porque tinha vindo de Mafra para a grande cidade e a mocha era loura, urbana, filha de uma familia da média/alta burguesia. E principalmente, eu não me projectava como presidente da república portuguesa. Este episódio caricatural de Cavaco não é caso único. Nós sabemos o que foi a crispação politica e social nos chamados tempos do Cavaquismo. Alguém que a partir daqui me diga que a validação deste argumento tem a ver com o enquadramento da esquerda/direita tem, no meu entender, sérios problemas na compreensão da realidade. A segunda razão é por um episódio a que atribuo a máxima relevância e que a maior parte das pessoas de esquerda que conheço não atribuiu relevância nenhuma: Cavaco e Silva necessitou um dia de ir a um hospital no Algarve enquanto utilizador (creio que para visitar o pai) e no serviço de segurança o vigilante pediu-lhe o Bilhete de Identidade. Cavaco e Silva ficou ofendido, queixou-se dele e tentou (não sei se conseguiu) que o mesmo fosse despedido. Este episódio, por se ter passado depois, a frio, revela para mim uma sobranceria e um complexo de inferioridade que o desaconselham como primeiro da República Portuguesa. A terceira razão é a de que Cavaco e Silva divide os Portugueses, sempre dividiu. Vê-se bem a aversão que provoca aos apoiantes de Soares, Alegre, Jerónimo e Louçã. Ver quase metade do país a tomar alka selzer durante cinco anos sempre que for comer pastéis de belém, houver uma inauguração lá na terra ou tiver de haver uma comunicação ao país, é razão que baste para invalidar um candidato. Não sei se um Presidente eleito deva ser o Presidente de todos os Portugueses. Mas não pode ser um Presidente que tenha contra si um tão grande número de portugueses. Eu nunca suportaria que um candidato de esquerda pudesse incomodar e causar idêntico mal estar a um tão grande número de pessoas fossem elas de direita, do centro ou de esquerda. É uma questão do mais elementar bom senso. Poder-se-ía dizer que esta terceira razão é dependente de que toda esta aversão a Cavaco é devida à sua actuação como primeiro ministro e que isso não se manifestará enquanto presidente da república. É ponderável o argumento. E os discursos de toda a esquerda aparentemente reforçam-no. No entanto é possível pensar também que a retórica anti cavaco da esquerda surgia porque havia um silêncio sobre o candidato e que este só apresentava, para validação das suas pretensões presidenciais, o seu passado como primeiro ministro. Ou seja, foi mais a esquerda que ficou refém da estratégia discursiva de Cavaco do que este a ser incomodado com o resssentimento da esquerda. Nesse aspecto já o escrevi e não vejo razão para não pensar que fui absolutamente sincero: Cavaco primeiro ministro para mim só é uma sombra para o candidado a Presidente na medida em que a sua actuação foi sempre muito mais dominada por aspectos que relevavam para a sua idiossincrasia e personalidade do que para uma filosofia ou uma prática politica. A quarta razão é a de que acho uma perfeita hiprocrisia o discurso anti-politico de Cavaco. Já aqui o escrevi, aliás. O argumento que Mário Soares apresentou para lembrar de que Cavaco Silva é um politico profissional foi aqui, em primeira mão, defendido. Dois dos meus primeiros livros comprados com o meu dinheiro foram o Tratado da Politica de Aristóteles e o Contrato Social de Rousseau. A dimensão política dignifica a vida humana, e a maior parte dos discursos pretensamente apolíticos que conheço são reedições de um populismo político que desprezo. Nunca saudei aqui a recusa de Cavaco em figurar nos cartazes do seu Partido. Pedro Santana Lopes pode ter sido um dos mais lastimáveis presidentes do Partido Social Democrata mas enquanto tal tinha toda a legitimidade para evocar, invocar a experiência governativa do partido. Os argumentos de Cavaco foram soezes, mesquinhos e pequeninos: podiam afectar a sua actividade privada. Cavaco queria atingir Pedro Santana Lopes mas atingiu milhares de militantes anónimos do seu partido que o ajudaram a construir as vitórias que eram tanto suas como deles e assim, do partido em que lutavam. Mas Cavaco, um homem a quem falta cultura e depois, cultura política, nunca deve ter percebido isso. A quinta razão é a de que a aura da providencialidade de Cavaco e Silva é uma falácia. Já aqui o escrevi: Cavaco e Silva não é o homem providencial para a crise que atravessamos mas a crise que atravessamos pode ser providencial para essa construção mitica de Cavaco. Por outro lado já aqui deixei escrito: não gostarei de ver Cavaco e Silva na Presidência não porque ele vá ser um adversário politico de Sócrates. Essa é mais uma falácia. Cavaco e Silva precisa mais de Sócrates do que o contrário. Nesse aspecto, como escrevi aqui, deveriamos votar Soares. Ele sim vai vigiar Sócrates. O problema é que nós não estamos a eleger um babysiter para Sócrates. Estamos a eleger um Presidente da República. Quando escrevi o homem ressentido é disso que eu falava. Eram estas as razões que tinha. Admito que nos agarramos a aspectos que descobrimos sobre as figuras públicas e sobre as quais construimos identidades. É assim com toda a gente, creio. Mas o argumento não parece discipiendo. Os tempos de liceu na sua formação diversificada, escola de generalidades sem dúvida, significam também tempos de formação cultural indissociáveis da formação e do desenvolvimento pessoal. Poderá pensar-se que não. Mas é mister reconhecer alguma capacidade de análise no argumento. Quando estamos a eleger um homem, digo quando estamos a eleger um só homem como representante de uma ideia de Portugal é preciso perceber porque é que nele é tão sólido esse divórcio com a cultura. E não falo do cosmopolotismo. Falo da cultura. A mim interessa-me compreender o homem, porque é que ele é assim. Quem imagina que aqui poderia alguma vez medrar o insulto não está a falar do que escrevo, apenas do que lê.

3 comentários:

Anónimo disse...

A ideia que dá depois de tantos posts sobre os candidatos às eleições presidenciais mais favoráveis a uns e principalmente contra um foi precisamente a de um possível ressentimento. Compreendo a explicação dada mas a mesma explicação tanto serve para um candidato como para os outros (esta história do hospital é do conhecimento comum a acho curioso como muitas pessoas mudariam de opinião se a pessoa em causa fosse outra (está no espírito limitado, extremamente generalizado, do português não separar o que está bem ou mal quando a causa lhe toca as suas paixões (não estou a personalizar); basta ver o que aconteceu nas últimas eleições autárquicas). Todos os candidatos têm histórias tristes, ou mesmo muito tristes, que lhes ficam tão mal como a qualquer outra pessoa. O que achei incorrecto na sequência de posts foi o modo como me pareceram um ataque personalizado (uma auto-análise poderá facilmente denotar isto mesmo) e achei por bem dar a minha opinião que vale tanto como a de qualquer pessoa. Da minha parte confesso que a política nos últimos anos se tornou em meros projectos de poder, de favorecimentos aos amigos e financiadores dos partidos e de outras coisas que apenas cabem no antro da degradação do nosso sistema político. Cada vez mais me pergunto onde estão as ideias e os ideais: parece que se esfumaram. Isto também se aplica a estas eleições presidenciais: uns preferem ataques aos outros candidatos, outros calam-se ou restringem-se; ficamos entre o ruído e o silêncio e ficamos sem saber de verdade as ideias, os conteúdos, aquilo a que se propõem (e não me estou a referir a fait-divers). E isto custa-me porque fico sem saber em quem votar e quando chego à urna de voto dobro simplesmente o papel em quatro, sem qualquer traço e revolto-me por aquilo em que a política se tornou.
Acho que já dei mais importância do que a merecida aos senhores que se intitulam de políticos, profissionais ou não, por isso peço desculpa e termino aqui as minhas divagações sobre o tema. Deixo assim ao JPL (posso tratar-te assim?) a minha opinião mas continuo a afirmar que este blog sem política é muito melhor. Um abraço.

JPN disse...

Morpheu, eu sei que para ti os comentários que escreva sobre este assunto serão sempre demais, mas creio que não escrevi sobre Cavaco essa "epifania de posts". penso que a sério só falei de Cavaco e Silva uma ou duas vezes aqui e para me "zangar" com o ressentimento da esquerda. E com a forma como a escolha de Soares era uma maneira de reactivar o fantasma do cavaquismo. É evidente que sou tendencioso, ou pelo mesmo inclinado. Não escondo que me sinto mais inclinado pela personalidade de Alegre e Soares do que pela de Cavaco. Não creio que seja apenas uma questão de enquadramento politico. Agora não generalizaria sobre as histórias tristes dos candidatos. Essa história do hospital é muito grave. Como também o é a atitude corporativa de Soares quando apoiou a estratégia de defesa/vitimização de Leonor Beleza. Não preciso de fazer auto-análise para assumir que qualquer coisa que eu escreva sobre Cavaco pode muito justamente ser entendido como um ataque pessoal a Cavaco e Silva. Afinal estamos a falar de uma pessoa que é candidata a Presidente da República. Por eleger um Presidente por um conjunto de características pessoais e politicas é que não me repugna nada em votar num presidente da área da Direita ou do Centro. Não sei o que isso possa ter de incorrecto. E embora aquilo que escreva sobre ele possa justamente ser considerado um ataque pessoal não ataco Cavaco de uma forma pessoal. Ataco-lhe características pessoais que tem um peso politico muito grande. Só mais uma coisa. A politica institucional, dos partidos, está cada vez pior porque as pessoas que se deviam interessar por ela não se interessam. Conheço muitos casos, não o teu. O que sei sobre o assunto é que poucas das pessoas que se desinteressam pela politica no seu sentido mais institucional, partidário, conseguem fazer sobreviver formas novas e diferentes de participação política. A esses admiro-os profundamente e acho que são co-autores dessa ideia generosa que ouvi uma vez a Maurice Clavel no Jornal Novo:"Amanhã a politica será outra coisa!". Mas tenho de reconhecer que a maior parte das pessoas que eu conheço que se chatearam com a politica no seu sentido mais institucionalizado começaram lentamente a serem piores cidadãos. Mais desinformados, mais desleixados, com mais desculpas gerais para o não funcionamento das coisas, do país. São aquilo que eu chamaria cidadãos gerais de um país muito particular. É tudo uma questão de peso, conta e medida, creio. E de não desabitar os lugares. Os partidos são lugares também de generosidade, de entrega e pensamento. Eu prefiro ser representado a representar mas não perfilho discursos nilistas sobre o poder. A vida é poder.
Por fim, os comentários que aqui deixas são muito bem vindos. Quanto ao tratamento prefiro que me chames JPN a JPL mas se insistires...lol. Abraço

Anónimo disse...

JPN peço imensas desculpas pelo lapsus linguae.