sexta-feira, dezembro 08, 2006
Tornar-se Pessoa
Impressionou-me esta carta no Glória Fácil. Como escrevi no outro dia, fiz aos vinte e dois anos um aborto e tive, vinte anos depois, um filho, sem que haja, entre uma e outra, alguma correlação com a posição que hoje defendo. Creio que o contacto com as circunstâncias cirúrgicas em que a intervenção foi feita me fizeram tomar um contacto mais de perto com o drama em que se pode tornar a interrupção voluntária da gravidez realizada em sitios clandestinos mas não terá sido isso a moldar a minha posição.
Tenho estado nos últimos tempos a seguir um pouco com mais atenção as participações na discussão sobre a interrupção voluntária da gravidez. Um dos blogues onde tenho seguido esta discussão, para além da sistemática discussão que a Fernanda Câncio tem feito no Glória Fácil, é o blogue do não (ou do sim á criminalização da IVG), onde por vezes também comentei. É aliás na sequência desses comentários que decidi trazer a discussão para o Respirar. Tudo porque uma das autoras do Blogue do Não me questionou por duas vezes sobre o que é ser pessoa.
Da primeira, por eu ter dito, num comentário que atribuir o estatuto de pessoa ao embrião, apenas porque é vida e não por possuir algumas das características que atribuimos à condição humana, poderia ser entendido também como uma depreciação da própria condição de pessoa. Tentei responder-lhe da melhor forma de que fui capaz mas mesmo assim não logrei o seu esclarecimento. E ainda bem. Porque só quando aqui cheguei é que me apercebi que eu próprio não estava também esclarecido da importância deste pequeno jogo dialético embrião pessoa-embrião não pessoa. E que não tem, na sua formulação, assim tanta importância. Por vezes temos a tendência para colocar as questões de uma forma dialética e não nos apercebemos que a dialética não é só uma das condições mais recorrentes da nossa formulação do juízo, é também um dispositivo que tende a conservar-nos dentro de um determinado trilho de pensamento, iluminado pela dissonância de um com o seu contrário. O diferendo que existe entre mim e os apoiantes do não (ou do sim à criminalização da IVG), não é sobre se o feto é ou não é pessoa, por muito que possa ser importante discutir essa ideia de que o embrião já é uma pessoa. Mas também é importante discuti-la para se perceber que a discussão sobre o ser pessoa não traz novos dados. Não há da parte nem de uns nem de outros o trazer de uma nova evidência sobre os embriões ou sobre as pessoas que de repente fulmine o campo de discussão oposto com uma determinada certeza. O que se passa é que os defensores do não (o do sim à criminalização da IVG) precisam que àquilo que consideramos embrião, passemos a considerar uma pessoa igual, juridicamente, a todas as outras pessoas. Para eles se o consideramos pessoa, seremos coniventes com um assassinato. Mas para que o consideremos assim, não nos trazem nada que não saibamos. Dizem-nos, é uma vida, é uma vida humana, logo é uma pessoa. Continua a ser o mesmissímo embrião. Não nos dizem que é uma pessoa porque fala, porque se exprime, porque se autodetermina, porque necessita de ser livre, porque necessita de ser cultivado e educado. Não, ele é pessoa porque será um dia livre, cultivado, autodeterminado, com uma determinada educação. Ou seja, ele é pessoa porque um dia se irá tornar uma pessoa. Matar um embrião, é matar uma vida que um dia (provavelmente) se iria tornar pessoa. Logo, matar um embrião é matar uma pessoa. E como é pessoa, aplica-se o mandamento, "Não matarás". E tudo no céu era estúpido como a Igreja Católica, dizia o poeta. Há um esforço deliberado de prolongar a inteligência - ou a estupidez- das coisas celestes na terra, sabemo-lo.
Já o escrevi, o discenso fundamental entre os apoiantes do não (e do sim à criminalização da IVG) e os defensores do sim (e do não à criminalização e penalização da IVG) é que os primeiros regem-se por um postulado de natureza ético-religiosa, ao qual querem atribuir estatuto político, enquanto os segundos, onde me inscrevo, caracterizam-se por querem validar politicamente os seus postulados ético-sociais. Poderão essas duas posições ser conciliáveis? Vasco Barreto exprime a dúvida:"Não sei o que dizer a quem condena passivamente uma mulher à morte por não poder aceitar uma intervenção que, sacrificando o embrião, a salve; também não sei como lidar com quem não permite um aborto em caso de gravidez por violação, condenando mãe e filho a uma pena perpétua de consequências inimagináveis.” "
Reconheçamos também que para os próprios defensores do sim à criminalização da interrupção voluntária da gravidez, a ideia mestra, de que o embrião é uma pessoa como qualquer outra, tem servido mais para os situar num antagonismo dialético com os opositores desta posição, do que para exigirem, coerentemente, a consequência daquilo que pensam. Porque, como refere Teresa: "Mas podemos até falar de ética, valores, opções do legislador penal. A pena prevista para o homicídio simples vai de 8 a 16 anos na nossa lei. Valor da vida a ser protegido com uma moldura penal que, para a nossa lei, é "pesada".Pois é, se for um feto já não é assim. Quem abortar ou fizer abortar é punido até 3 anos. Quem fizer abortar, sem o consentimento da mulher, é punido de 2 a 8....
Porque de facto, sejamos honestos, nem os próprios defensores do sim à criminalização entendem que o embrião é um ser igual ao ser que por exemplo, é um recém-nascido. Se efectivamente assim pensassem, teriam de tirar a consequência desse pensamento e exigir um agravamento da pena para quem mata um embrião. E o mesmo para os cúmplices, pois sabemos que entre a mulher, a parteira e o acto há uma rede, silenciosa, discreta, de cumplicidades e conivências.Os defensores do sim à criminalização da IVG sabem bem que o estatuto de pessoa que dão ao embrião tem um mero valor argumentativo e retórico. Se assim não fosse, e sabendo-se que está em causa uma oportunidade de alteração legislativa, provavelmente não teríamos hoje uma querela entre os que entendem que a IVG deve ser descriminalizada e legalizada, e aqueles que entendem que ela deve ser uma prática condenada criminalmente, para passarmos a ter uma oposição entre os primeiros e aqueles que defendem um agravamento da pena, qualificando a IVG com uma moldura penal de um homicidio. Ora se os defensores do sim à criminalização são defensores de que o embrião é uma pessoa e mesmo assim aceitam que a moldura penal para a IVG seja diferente daquela que resulta da morte de um recém-nascido, também, continuando a achar que é uma pessoa, poderão aceitar que não tem sentido nenhum dizer-se que os oponentes da criminalização IVG entendem que há pessoas de primeira ou de segunda.
Há aqui um aspecto interessante: para os defensores da criminalização da IVG não é menor o valor de um embrião face ao de um recém-nascido, como também não é igual, como acabei de propôr. Para os defensores do sim à criminalização, o valor do embrião é maior do que o de uma vida adulta. Como se o embrião fosse ainda e totalmente uma manifestação divina. Deus manifestado em nós. Os defensores da criminalização não falam nitidamente do embrião, sim de uma ideia romântica, que lhes serve, mais uma vez, para pregarem a presença da religião na vida das nossas sociedades.
É por isso que é duvidoso que seja possível discutir com eles sobre esse postulado. O que podemos dizer de alguém que enfatiza tanto o embrião que o coloca num plano superior ao da vida da mãe? Provavelmente muitos dos que defendem a descriminalização e legalização da IVG, seriam capazes de partilharem a posição dos defensores da não interrupção voluntária da gravidez, se toda a sua iniciativa fosse no sentido de tudo fazer para que ninguém interrompesse voluntariamente a sua gravidez, participando dessa utopia de tentarem eliminar as circunstâncias que estão, na sua grande maioria, ligadas à interrupção voluntária da gravidez. Mas a partir do momento em que é tomada a decisão de fazer a interrupção - para além de a respeitar como algo ainda da esfera de decisão dos progenitores - como não reconhecer que a clandestinidade do acto traz inúmeras situações de morte para a mãe?
Por isso é bom esclarecer as coisas: podemos dizer, que o embrião é uma pessoa. Se o dissermos veementemente, tão veementemente como o ouvimos para os lados do Blogue do Não, chegaremos mesmo a pensar que o ser pessoa faz parte da natureza do embrião. Ou seja, à força de acharmos impensável prespectivar o embrião fora da nossa classificação de pessoa, chegaremos a concluir que a condição de embrião é indissociável da sua pessoalidade. Todos o sabemos. São categorias do pensamento, estas. Mas é bom que em algum momento nos apercebamos disso, que não são evidências partilháveis com quem não pensa como nós. São pensamentos de tribo. Que se respeitam. Mas por mais recursos científicos que os defensores da criminalização da IVG apresentem, continua a faltar ciência e a sobrar religião neste argumentário. É por isso que o verdadeiro diferendo é entre a ideia de uma sociedade regulada por Deus através dos seus mais altos dignatários e representantes, conforme cada confissão religiosa, e a de uma sociedade regulada por homens.
Tenho por hábito duvidar dos meus próprios pressupostos. A tarefa argumentativa por vezes é tão apaixonante que nos deixa pouco espaço para o auto-questionamento. Por isso, ao verificar que um dos momentos altos da retórica a favor da criminalização do aborto e da defesa do embrião como uma pessoa humana, é o argumento não verbal da exposição de uma imagem ecográfica do feto, fui buscar a primeira imagem ecográfica do Pedro. Lembro-me que as minhas primeiras posições sobre a IVG, tinha eu uns quinze anos, eram de sedução pela retórica contra a sua legalização, e sei bem o efeito emotivo que o vislumbre de um embrião, em fase avançada de desenvolvimento, provocou em mim. Por isso fui ver a imagem do embrião do meu próprio filho. Nela ele aparece a saudar o mundo. Sei bem como isso me impressionou e como, nesse gesto de comunicação, antevi uma característica da sua personalidade que muito me agradou. Seria ele, para mim, uma pessoa?
A forma como guardei o ficheiro é para mim tão reveladora como há pouco escrevi: "fui buscar a primeira imagem ecográfica do Pedro". Chamei-lhe projecto. E agora escrevi a primeira imagem ecográfica do Pedro. Não disse, do embrião ou do feto. Hoje, posso falar do embrião como um momento da vida pessoal do meu filho. Porque eu o quis, porque eu desejei ver nele um projecto. Porque ele nasceu. O embrião da gravidez interrompida há vinte anos não o tenho como meu filho, nem como uma pessoa.
Uma pessoa, no seu sentido filosófico - e independemente do seu estatuto jurídico e social, que também diverge em relação à forma a sociedade se relaciona, diferentemnete, com ela - é todo um trajecto, um projecto. Projecto dos seus progenitores primeiro, projecto autónomo, de cada um consigo mesmo, depois. É-o desde sempre. Para o sempre que uma etérea e efémera vida, é.
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7 comentários:
trés trés bien. bj
É como diz. Por vezes as ideias não podem nunca ser palavras e as palavras, rafeiras, nunca chegarão a ideias.
Talvez por isso ache, desde o princípio destes debates, que estamos para aqui a falar de valores quando se devia discutir política criminal. Sim, é disso que se trata, apesar do legislador, com muito mais competência para o fazer que nós cidadãos, tenha armado em Pilatos e passado a batata quente.
Quando o legislador aprovou a existente lei do aborto tomou uma decisão que, levada até às últimas consequências, e tentando partir dos pressupostos de quem defende o não (que é sim), é muito mais difícil de compreender - se o feto é pessoa, e é pessoa como nós, então como, porquê, com que justificação moral, admitimos a morte eugénica? Se não for perfeitinho o feto já não é pessoa? Ou será que se aceita, olhando para o lado e assobiando para o ar, que ter um filho deficiente é justificação que chegue para se aceitar a grave perturbação da mãe? E isto está a levar-nos onde? A aceitar que a deficiência rouba um pouco da alma ou a que podemos, nas nossas cátedras, decidir o que pode ou não ser grave perturbação para uma mulher?
E os diagnósticos pré-natais de doenças degenerativas? Sim, o bebé nasce saudável e rosadinho e assim poderá viver uns anos. Sim, também é certinho que não passará da puberdade. Sim, fazem-se abortos desses, muitos, e bem, nas nossas maternidades.
E agora deixar de ter medo das palavras e pôr isto numa pergunta de referendo? Talvez do tipo - considerando que há vida desde a fecundação e que essa vida deve por lei ser protegida a partir desse momento, sendo criminalmente perseguido e punido quem por qualquer forma lhe puser fim, considera que é aceitável matar os fetos que apresentem graves deficiências? Nojento, não é? Nesta, posta assim, e só porque posta assim, eu votava Não de caras.
Claro que o legislador fez o que devia fazer agora – sem levantar grandes questões éticas resolveu o que era um problema social e que gerava inúmeros dramas humanos.
Estou a brincar com as tais palavras rafeiras? Acho que não, estou só a tentar fazer o que v. fez e bem melhor que eu - separar conceitos de realidades, encarar a vida de frente, e votar sim porque é a única forma que vejo de resolver um grave problema social e de saúde pública. E porque é justo.
Está, a meu ver, a cometer um erro básico: o de partir do princípio que só há duas posições: uma para o Não e outra para o Sim. Como tem obrigação de saber, nada mais errado! Há na realidade imensas variantes, com argumentos totalmente diferentes. Eu, que votarei Não neste referendo, discordo completamente de muitas ds razões de outros Nãos...
Já agora, ao votar Sim, está a votar "Sim à criminalização da IVG a partir das 10 semanas". Quer explicar-me porquê? Ou preferia despenalizar até aos nove meses?
Saudações!
PS: Sobre a pergunta concreta:
1) Perguntam-nos se queremos despenalizar o aborto até às 10 semanas, juntando os "casos especiais" a todos os outros "por opção da mulher", mesmo eventualmente os mais fúteis. (Não se diga que ninguém aborta por razões fúteis, quando se sabe que há gente que espanca e viola os próprios filhos. Infelizmente há gente para tudo, e a Lei é precisamente para tratar desses casos.)
2) Misturam essa despenalização com a legalização, acrescentando à pergunta o "estabelecimento de saúde legalmente autorizado". Perguntam-nos por isso se queremos também legalizar o aborto até às 10 semanas, juntando à despenalização:
a) o consentimento da sociedade a esse acto e
b) o apoio do Estado à sua realização.
3) E se um dos progenitores quiser o aborto no prazo legal e o outro não, num caso de esquecimento ou falha dos contraceptivos, por exemplo? A pergunta pressupõe que o filho é "propriedade" da mãe e ponto final. A opinião do pai não é tomada em conta para nada.
Não será demais juntar tudo isto numa pergunta só? Não seria melhor perguntar uma coisa de cada vez?
A sugestão que eu dou é o estudo do que já foi pensado e debatido no referendo anterior.
Eis a minha contribuição. Chamo a atenção também para as citações que compilei em 1998, há lá posições interessantes de figuras públicas... ;-)
http://taf.net/opiniao/2004/08/o-aborto-verso-2004.htm
http://taf.net/opiniao/2004/09/perguntas-esquecidas.htm
http://taf.net/opiniao/aborto-citacoes.htm
Caro TAF
não sei se estarei a correr esse erro de que me acusa. estabeleci uma linha de argumentação em relação a algumas das razões que têm sido mais frequentemente apresentadas. se extraiu dai algum desejo de rebater toda a argumentação sobre este assunto, a ser por minha responsabilidade, foi involuntária. irei ler os seus textos. e se vir neles motivo para discutir, cá nos voltaremos a encontrar. quanto á pergunta que me faz, não, não estou a responder isso. tenho por método tentar responder a uma pergunta de cada vez. começo por isso sempre por aquelas que realmente me fazem. aquela que vc deduz não a ouvi em parte alguma.de qualquer forma entre as dez semanas e os nove meses vai...senão uma eternidade, pelo menos uma vida...
1. sobre as razões futéis: não sei se há pessoas que abortam por razões futéis; sei também que há pessoas que vivem, segundo o meu padrão de vida, futilmente. desde que a lei não seja futil, o que é que eu tenho a ver que haja gente que vive futilmente? quer vc dizer que a lei é um instrumento de futilidade para ajudar pessoas futéis a fazer abortos futéis? ora meu caro amigo, se for dessa sorte o tipo de argumentação que irei encontrar nos links que me deixou, não espere pela resposta. um arremedo de futilidade decerto me distrairá no momento do responso!
Teresa, não, não creio que esteja a brincar com as palavras. obrigado. :)
Só para juntar uma ideia à conversa:
se o embrião já se "tornou pessoa", o aborto após um acidente pode ser considerado homicídio involuntário?
Este referendo assenta numa falácia (propositadamente e habilmente "montada", pois o referendo foi preparado à medida dos que qurem votar sim à eliminação da vida).
Na verdade, o fundo da questão não é a mulher ir ou não para a prisão se abortar fora das condições "legais", mas o cerne de toda esta problemática é considerar ou não se o ser humano começa a ser pessoa no momento inicial da concepção. O resto, é discussão estéril e só serve para enganar incautos e ingénuos, ou mal informados.
A questão está há muito resolvida - são os próprios cientistas que o afirmam, sem margem para quaisquer dúvidas. Assim, e sabendo-se que a Vida se inicia no momento da concepção, é evidente que tirá-la, seja por que motivo for, só pode ser considerado um atentado grave à vida humana.
E não venham as pseudo-feministas dizer que no corpo delas mandam elas...! Primeiro, no corpo delas não mandam elas... manda o Criador que lhes deu a vida.
E no corpo do filho que trazem no ventre - dom que Deus lhes deu - mandam muito menos, pois é um ser criado por Deus, que se serviu do pai e da mãe para o trazer a este mundo.
Muito engano anda por essas cabeças...!
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