sábado, janeiro 27, 2007

Homem- Écran

Eu explico: chego a casa, pouso os adereços do meu dia e sento-me, não importa que seja o sofá, sento-me, diante do écran, diante desta suferfície luminosa, este ruido permanente do portátil, digo, quase que o incorporei nas minhas veias, este fluir cibernético. É o meu ágora. Aqui, solitário. Eu gosto muito da minha vida. Não vejam em mim o que não sou. Levanto-me e canto interiormente a um deus que não existe. Bocejo alarvemente e rio, por cada poro. Saio para rua e gosto de perceber que os meus vizinhos são gente que em algum momento se me aparentam. A velhota do lado. Desde que me roubaram o escadote é a ela que peço que me empreste a escada, para poder subir à arrecadação. Bato à porta e ouço sempre uma voz que vem do fundo, receosa de abrir a porta, Quem é?, sou eu vizinha. Dou-lhe sempre uma palavra a mais. No outro dia ía a sair tinha a ajudante domiciliária da Santa Casa a bater-lhe à porta. Não respondeu, estava a dormir, deixou-se ficar, disse-me mais tarde. Naquela manhã apanhei um pequeno susto. Não foi um susto a sério, eu sabia que não podia ter acontecido nada de grave, ou ela tinha ficado em casa do filho, ou tinha ficado a dormir, ou tinha mesmo morrido, mas não seria nada de sério, no fundo a pequena representação que fiz do meu cuidado era apenas uma forma de me sentir um pouco menos só. De qualquer forma hoje quando lhe fui levar o escadote disse-lhe, tem de me deixar o número do seu filho, para lhe podermos acudir se for preciso. Ela deu-mo toda contente. Eu percebi que há muitas vezes que ela fica só e tem medo. Tenho menos trinta anos do que ela mas conheço esse seu medo, sou solidário com ele. O medo não tem rugas, tempo. Tenho os mesmos medos que tinha quando era criança, menos claro, a infância é a nossa idade média, povoada de cavaleiros andantes, brumas, castelos que se erguem de montes sombrios, o nosso imaginário é a grande maravilha da nossa vida, da vida humana. Sinto-me em casa, quando saio para a rua. No prédio ao lado uma actriz com quem partilhei o mesmo palco, há uma boa mão cheia de anos, em Leiria. No andar de cima um jovem pintor saotomense, que está por aqui à um mês e que conheço desde o ano passado quando não fui à sua ilha. Na esplanada encontro frequentemente amigos e conhecidos. Sabem-me bem as sopas do restaurante de baixo. O descoffee no Café da Vila. Eu gosto muito da minha vida. Não vejam em mim aquilo que eu não sou. É por isso mais verdade quando, como esta nortada impiedosa, um frio lúcido, cai sobre a minha vida e eu percebo que a minha satisfação não resolve em nada o atoleiro que é a merda de mundo em que vivo. O medíocre modo como nela pairo. E não só este écran. Tudo, os outros, as ruas, o meu ofício, é uma superfície espelhada onde me revejo, onde me procuro. Tocam os sinos em São Vicente de Fora. Parece que a rebate. Imagino uma vida de causas, assim. Como se fosse um inventário. Causa número um, a esmeralda perdida. Causa número dois, a IVG. Causa número três...qual é que era a número três? Baralho-me. Reorganizo-me. Renumero as causas. Causa número um, ser um super-herói de quinze em quinze dias. Causa número dois...faço uma pausa para respirar. O teatro, a escrita, a vida, o que isso interessa. Esta minha propensão para a ciência das coisas em movimento acaba sempre por me pacificar. Tudo é duplíce. O riso de um amigo, o passe mágico de uma pirueta no tablado, as mãos dos amantes. O que acontece. A nossa interpretação. Aqui, diante deste écran, existo sempre duas vezes.
Imagem: Susana Paiva

3 comentários:

Alba disse...

Belíssimo, este texto!

Mónica (em Campanhã) disse...

eu explico-me também: acordo de manhã. trago um café e um pão torrado e sento-me aqui em frente a este êcran. frequentemente a ler-te (como há muito tempo lia os jornais de domingo, esses que já não conheço, não desde que tenho este êcran virado ao mundo).

"Eu gosto muito da minha vida. (...) eu percebo que a minha satisfação não resolve em nada o atoleiro que é a merda de mundo em que vivo. O medíocre modo como nela pairo. E não só este écran. Tudo, os outros, as ruas, o meu ofício, é uma superfície espelhada onde me revejo, onde me procuro"

obrigada - sempre - por escreveres
assim.

Anónimo disse...

Qualquer coisa como:
(...) sou um evadido desde que nasci.
Fecharam-me em mim, Ah, mas eu fugi.