terça-feira, janeiro 30, 2007
A luz que de nós vem
Começou ontem, no Teatro D. Maria II, o atelier com o Sinisterra. Durante uns dias eu vou ser disto, escrever. É de manhã, faço um exercício. Coloco no leitor um cd com sons um pouco etéreos, pianos, pássaros, sons da terra para bébés, veio há muito com uma Pais e Filhos. Eu já não sei o que é o sentido da vida e também já não consigo achar a minima piada e orientação naqueles ímpetos e slogans com que me auto-controlava evitando descarrilar. Perdi todos os meus deuses. Sou quase capaz de dizer que o amor, a verdadeira divindade que ainda não destronei, esse amor loquaz e exarcebadamente declarativo, está também em processo de decantação e não me admirarei se mais tarde ou mais cedo abandonar a minha existência. E nem o sexo, a sua exaustão, o substitui. Às vezes digo foder para tentar compensar a minha falta - ou o meu excesso - mas soa-me sempre a falso. Até o meu amor se ri da minha voz de falsete. Fui educado e cultivado num manto de ternura e é nessa comoção que, ido o pensamento, a fé, o ideal, as minhas células ainda me reconhecem e se dispôem a continuar a processar-me. O que eu queria dizer - e nem sei se verdadeiramente o desejava confessar - é que já não sei o sentido da vida mas, quando escrevo, quando me sento a escrever, quando preparo o ambiente para saborear este acto de escrita, penso que sou um gajo cheio de sorte por ainda me reconhecer neste gesto meio oficinal de procurar as imagens das palavras e de as descrever, sabendo que o que expresso, é muito menor do que o poema que neste momento me comove. O mais engraçado é que toda esta conversa começou na minha cabeça porque ontem, quando Sinisterra disse que " há um princípio coercivo (fábula, história, enredo) que é impossível dissociar do trabalho dramatúrgico, porque, entre outras razões, o homem está biologicamente programado para procurar o sentido" eu o contraditei logo ali, no meu pensamento. Talvez o que nos distinga não é o estarmos biologicamente programados para procurar o sentido. Lá em baixo, no pátio, o cão da vila fá-lo muito melhor do que eu. O que me distingue, é que biologicamente eu estou programado para me dissociar do sentido, para o perder. É isso que me distingue de todos os seres vivos que conheço. Só na minha efabulação da vida é que eu consigo perceber que um animal perdeu o sentido da sua existência. O animismo que o sustenta é um movimento e o movimento é, em todos os seres vivos menos nos homens e nas mulheres, sentido. A (im) possibilidade do humano, não é a procura do sentido. É a possibilidade de o perdermos. É isso que nos ilumina.
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1 comentário:
tinha passado por aqui a correr mas voltei agora. precisava de reler isto: "fui educado e cultivado num manto de ternura e é nessa comoção que (...) as minhas células ainda me reconhecem e se dispõe a continuar a processar-me".
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