terça-feira, janeiro 23, 2007

O veneno e o antídoto

Talvez a Fernanda Câncio, no Glória Fácil, esteja a exagerar o suposto disparate alheio: é muito claro para quem leu jornais e ouviu televisão nos últimos dias que houve uma torrente de emotividade que se sobrepôs à factualidade disponível, manchando esta actividade de noticiar. Não restam disso nenhumas dúvidas e a Fernanda Câncio pode citar todos os trabalhos jornalísticos que considera dignos desse nome que não consegue desmentir de forma objectiva o trabalho da comunicação social na construção do roteiro ficcional que se impôs neste caso: a batalha do pai biológico contra o pai adoptivo, a caracterização do primeiro como um homem sem qualidades, sem amor, provavelmente ofuscado com os trinta dinheiros (a expressão não é minha), sem capacidade de prover ao sustento e à felicidade da sua filha e por isso sem legitimidade para requerer o poder paternal, e o segundo como um ser heróico, grande na sua dimensão humana, que apenas é caracterizada pela expressão o que ama, o que cuida, o que vela; também, o não desmontar suficientemente claro da ideia de que o colectivo de juízes (e não a juíza) que julgou o sargento Matos Gomes não decidiu a tutela do poder paternal e portanto não julgou hoje sobre com quem deve estar a criança, mas sim, avaliou e julgou o comportamento de um homem e de uma mulher que durante dois anos e meio sonegaram a filha a um contacto com aquele que tinha, legalmente a tutela do poder paternal; ao não desmontarem isso, que também deveria ser notícia, avalizaram assim a torrente que se constituiu na opinião pública de que a juíza (e esta errada personalização de um colectivo de juízes não foi suficientemente esclarecida e desmontada) tinha, aos cinco anos da criança, decidido entregá-la a um estranho o que é de todo falso; por exemplo, não vi nenhuma entrevista a nenhum pedopsiquiatra sobre os efeitos negativos que a subtração de uma menor a um contexto de enraizamento social poderia ter, quando isso é uma das matérias mais relevantes da problemática em causa e que poderia ajudar-nos a perceber da bondade do comportamento do casal que tem a sua guarda; vi relatos de que o médico pediatra teria comprovado, há alguns tempos, o estado da criança, mas não vi ninguém a colocar a questão sobre o que aconteceria (ou se já tinha acontecido) se a criança precisasse de ser tratada numa unidade de saúde onde a sua identificação pudesse levar à denúncia da situação de ilegalidade em que se encontrava a sua guarda; na dicotonomia pai adoptivo versus pai biológico, insistiu-se na caracterização de que era assim que deviam ser apresentados os protagonistas porque interessava à construção ficcional do argumento servido, sem pensar que objectivamente, o sargento não era pai adoptivo, nem Baltazar surgia agora nesta história por ser o pai biológico, mas sim por deter, legalmente a tutela do poder paternal (eu sei que a diferença é subtil, mas de quanto subtileza foi feita a intoxicação informativa), quando está por provar, no acordão isso não é claro, que o que valoriza, junto do colectivo de juízes, a posição de Baltazar, seja o de ele ser o pai biológico e não o de ser ele quem detem o poder paternal); mais, sendo muito claro a partir de certa altura que a comunicação social tinha tido um trabalho francamente entusiasmado sobre este caso (veja-se a forma como noticiou um abaixo assinado que, ainda era uma ideia, já era apresentado de forma divergente na titularia (como um facto) e no corpo da notícia (como um projecto), erro onde incorreram tanto o Público como o DN, e que não sabemos que peso terá tido nessa imensa maré emocional que levou à assinatura do habbeas corpus) não realizaram aquilo que costuma ser useiro e vezeiro em outros casos deste tipo: o chamarem à colação pessoas capazes de analisar o próprio furor mediático criado. Aliás, basta ir-se ao site que divulgou o acordão para se perceber o continuado aparecimento de comentários de pessoas que entenderam que o acordão exibia uma factualidade que não tinha dominado o trabalho informativo que tinha sido realizado (e que não são só as peças de reportagem, é também a forma como ela é servida, titularia incluida).
Numa coisa Fernanda Câncio tem razão * . O trabalho jornalístico tem sido o veneno e o antídoto (que tem vindo progressivamente a ser administrado ao paciente, digo, leitor, à medida que este caso avança) desta intoxicação informativa. E portanto poderá encontrar, a começar pelos trabalhos realizados no DN - que arrancou mais tarde que o Público no destaque feito mas por isso mesmo ganhou mais em objectividade - momentos de um trabalho jornalístico empenhado mais na revelação dos factos do que na manutenção do status quo ficcional (e emocional) que nos foi servido nos últimos dias. Poderá e deverá - se isso não servir de ocultação ao trabalho de envenamento público - prazentear-nos com a excelência do antídoto.
[* Há (mais) um aspecto em que a Fernanda Câncio é pertinente: a disponibilização do Acordão provocou-nos uma imersão numa factualidade que não estava assim, valorizada, mas também omite, por natureza, uma questão importante. É que se entre o que se passou com Baltazar, Adelina e Matos Gomes foi possível a constituição de prova através do recurso ao contraditório, naquilo que se terá passado entre Aidida e Baltazar, só temos, no Acordão, a posição da defesa de Baltazar. Ou, indirectamente, aquilo que disso podemos deduzir na defesa do casal.]

2 comentários:

Anónimo disse...

Seja qual for o caminho agora escolhido Esmeralda transportará a marca toda a sua vida.
Esta é uma história de Desamor..... Porque Amar uma criança não é possuí-la...como quem tem um colar de diamantes azuis.... é Saber que Ela é um diamante azul...por isso raro.... e quem Ama cuida... e que cuidar não significa colocar cercas de arame farpado electrificadas.
Esmeralda poderia ter 2 Pais...2 Mães..... Poderia...se os adultos fossem suficientemente Grandes para Saber Amar.

J.... Gosto de te Ler....Muito (sorriso suave)...ainda bem que há quem o faz como tu.

Mónica (em Campanhã) disse...

ainda bem que decidiste voltar ao assunto e deixar os especialistas de lado.

eu não consegui ver o P&C, adivinhando as tiradas orgásmicas da FCP, logo desde a peça inicial onde o jornalista se interrogava se deviam ganhar os afectos ou a lei. assim, como se já tudo estivesse decidido, só prós, sem contras.