quarta-feira, janeiro 24, 2007

A vida enquanto argumento

Eu, que sempre senti que a questão do referendo deveria ter sido resolvida com a coragem política, não delegada, resultante de um determinado programa eleitoral, começo a pensar que afinal de contas fazemos bem em andar nisto. É claro que muitos dos nossos argumentos parecem muito fracos. É preciso pensar que esta filosofia de ponta de colocar um país inteiro a falar sobre onde começa a vida e o que é que é que ela pode ser, junta calceteiros e doutores do reino, juízes e lavadeiras, professores e cabeleireiras, estivadores e lentes, das mais diversas classes sociais e níveis etários. Não se vê por isso como esta discussão pudesse ser um momento de um grande brilhantismo intelectual. A própria propaganda e publicidade tem deixado muito a desejar. Cartazes que são lidos de forma ambígua, outros que são mal escritos, são utilizados tanto pelos partidários do sim como pelos partidários do não.
Há no entanto uma questão que nos deve fazer pensar: a justiça e o bom senso da opção escolhida depende não da capacidade argumentativa dos defensores de cada uma das opções, mas da forma como cada uma das opções conseguir estabelecer-se como um programa coerente e dirigido a fazer da nossa vida algo melhor.
Ou seja, se o sim à despenalização da interrupção voluntária da gravidez vier a ser sufragado pelo referendo, a nossa vida será melhor não se a nossa sociedade se tornar num dispositivo industrial de destruir embriões, como temem os defensores do não, mas se, protegidos os vivos que estão mais directamente ameaçados com as consequências da penalização, se salvaguardada a tomada de decisão que torna a aventura da paternidade e da maternidade num momento tão transcendente da nossa existência, conseguirmos, nem que seja por este processo de discussão pública, envolvermo-nos todos mais, socialmente, na tentativa de erradicação de muitas das situações que levam as pessoas a abortar.
Da mesma forma, se o não à despenalização da interrupção voluntária da gravidez vier a ser sufragado pelo referendo, a nossa vida será melhor se nos envolvermos todos mais, socialmente, na tentativa de erradicação de muitas das situações que levam as pessoas a abortar ( para além desse imenso combate contra a tutela que a religião mantém sobre o nosso sistema político e legislativo e na solidariedade para com as famílias que possam vir a ser julgadas, que sem dúvida muitos dos que defendem o sim sentirão necessidade de continuar).

E isto que parece uma evidência sempre, ainda o é mais num caso em que as ideias dos defensores do não e dos defensores do sim não são contraditórias nem antagónicas. Estão em oposição, no dia 11 de Fevereiro, estão em oposição na vida de todos os dias, mas não decorrem de argumentos contraditórios. O sim dos defensores da despenalização, pode perfeitamente trabalhar com os mesmos argumentos do não. Quando os defensores do não dizem que não se deve fazer a IVG porque está em causa, no embrião, uma vida humana, os defensores do sim podem reconhecê-lo e mesmo assim dizer que não estando em causa apenas isso, defendem não só que seja possível fazê-la, como também que seja possível fazê-la em condições de saúde que garantam a integridade e a dignidade da mulher. Se fossem contraditórios, a posição do Sim só ganharia provimento retórico se conseguisse provar que não há no embrião humano, vida. Da mesma forma, a posição do Não só teria algum sentido argumentativo se conseguisse demonstrar que, às dez semanas, a vida embrionária tinha um estatuto de pessoa e que por isso o poder de decisão do par ou da mulher sobre o seu destino seria uma espécie de infanticidio.

Não. Para muitos o que acabei de dizer parece um rotundo disparate: o antagonismo entre o Não e o Sim no próximo referendo, não parece ser, como aqui se diz, essencialmente um antagonismo posicional, parece mais ser um profundo antagonismo de natureza ideológica e politica.

E isto acontece porque, como sempre acontece nestas coisas, há um acantonamento ideológico e político - embora haja já muitas pessoas que defendem a diluição do posicionamento político partidário - o que faz com que, se tiveremos alguma pressa, poderemos agrupar e caracterizar social, politica e ideologicamente a comunidade do sim e a comunidade do não. Embora, se nos demorarmos mais algum tempo, e no movimento existente isso é muito claro, verifiquemos que o enquadramento esquerda e direita não produz uma decisiva mais valia discursiva sobre o esclarecimento das posições do sim ou do não.
Como muito bem sintetizou Vasco M. Barreto, o que vai estar em questão no dia 11, é saber se vencem aqueles que têm uma concepção maximalista ou os que têm uma concepção minimalista da forma como a sociedade deve, moralmente, regular-se.

O que vai estar em questão no dia 11, é assim saber se vencem aqueles que pensam que as pessoas viverão melhor se o ideal de vida que partilham for o mais elevado possível, independentemente da qualidade da vida que realmente vivem, ou se vencem aqueles que defendem que as pessoas poderão ter um melhor ideal de vida, se nos empenharmos em melhorar as condições reais da vida que vivemos.

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