terça-feira, fevereiro 13, 2007

Corpo sentido

Ontem deitei-me submerso em tristeza inexistente. É talvez dos milhares de formas de ser triste a mais mortal, a mais propensa ao suícidio, pensei. Digo suícidio por basófia, para ver se empresto algum heroísmo e poesia aos meus dias. Adivinho que nunca morrerei de livre vontade. Mas mesmo assim isto não são pensamentos próprios de um tipo ao deitar-se, tenho que o admitir. E ainda bem que é ao deitar, sosseguei-me. Assim podes morrer e nascer de novo e tu sabes o que as manhãs fazem aos teus dias, confidenciei-me. Se fosse ao acordar não saberia o que fazer. Entraria em pânico. Como suportar os segundos, os minutos, as horas, com uma tristeza assim tão fortemente sacudida pela interpretação do próprio desabamento em que a condição triste se constituiu? Quer dizer, saberia-o. Sabemos tantas coisas. E provavelmente só sabemos realmente as coisas quando deixamos de as saber, de as ter como conhecidas. A nossa sabedoria das coisas é muito reles. A única sabedoria sábia é a que nasce e morre no e do despojamento interpretativo. E sabê-lo não me adianta nada. É só uma forma de ser triste de uma outra maneira. Porque não basta sabermos a impossibilidade da nossa sabedoria reles dizer algo inteligente aos nossos dias. Isso ainda é excesso interpretativo. É fazer tempo. Fazer tempo enquanto o céu não muda de cor, este capachinho que cobre todo o horizonte, enquanto tu não acordas, enquanto algo não me leva para outro minuto que não este. Fazer tempo até que a noite se vá e de repente nasça uma janela na manhã defronte ao rio. Adormeci, dormi bem. Acordei com vontade, dei aquele impulso de quem reune todos os músculos dispersos, tomando conta de um corpo espalhado entre os lençóis. E foi só quando desci o Caracol da Graça que me apercebi do lugar onde me encontrava: faltam-me sentidos, falta-me sentido, para o existir. Passei por dois toxicodependentes nesta sala de chuto improvisada. Baixam a cara envergonhados. São delicados na sua vergonha. Fedem, causam-me calafrios interiores, mas são delicados na forma como pretendem poupar-me ao exercício de sentido a que se dedicam. No outro dia andaram a consertar as condutas de água que descem a colina e eu pensei que estas obras seriam o fim desta sala de chuto improvisada, a céu aberto. Não foi. E ainda bem. Já me habituei a esta delicadeza deles, faz-me bem ao meu espirito desinvestido de sentido começar assim o dia. E talvez num outro qualquer sitio não pudessem ser assim compreendidos e a incompreensão é um passo decidido para o fim da delicadeza do existir. Ao arrumar o saco antes de sair pensei que hoje não queria ler nenhum jornal. Peguei num livro de Italo Calvino, as lições para acabar com o milénio. E é com estes apetrechos que ouço os sons dos meus pés serpenteando pelo Caracol da Graça enquanto sinto densificar-me numa irresolução, numa incapacidade de interpretar. Deixo-me ir. O meu corpo pensa melhor do que eu. Por muito que me custe reconhecê-lo - ou será interpretá-lo? - o meu corpo tem sabedoria bastante para me levar até à noite deste dia.

1 comentário:

sofia. disse...

Fiquei-me com esta frase: "E ainda bem que é ao deitar, sosseguei-me. Assim podes morrer e nascer de novo e tu sabes o que as manhãs fazem aos teus dias, confidenciei-me"
Tão forte este texto, não o consigo parar de ler.
(ainda bem que esta minha 1ª visita começou aqui...)