sábado, março 24, 2007

Sempre

Tu ouviste-me bem. Eu disse sempre. Devemos e deveremos desodiar sempre. Olha bem o que é uma pele, a pele, esse revestimento cutâneo que proteje o corpo da sua permanente ferida. Parece que é um tecido compacto, único, mas sabêmo-lo mais esburacado que uma peneira por onde o ar circula. É assim também, da mesma forma exacta e porosa, que o amor cobre milimetricamente toda a nossa ferida do existir. Não caias nesse engano. Não somos feitos de ódio. É o amor que nos preenche e habita, é ele, com o seu vulcânico desejo de sermos férteis, de sermos dádiva, de nos fragmentarmos em mil sóis, homem e mulher pedaço de estrela, de sol, de firmamento. A nossa pele interior é feita de planetas, de cometas, de estrelas, de rebentamentos máximos, latejantes. Não somos feitos de ódio. Não confundamos as coisas, tudo. Uma coisa é a ferida, a carne viva, a latejar, outra coisa é o ódio. O ódio não é mais do que a tortura que um espírito atormentado se concede a si mesmo, aos que o cercam. O que em nós tende, como o sangue que circula escrupuloso por todos os pedaços de corpo que necessitam de ser reavivados, é a possibilidade alquímica de um ser em transformação. De um ser em delírio. De um ser varrido por um vendaval que não é mais do que a apoteose do sujeito escancarado sobre o ser em dávida que ele é. E isto é de tal forma e tão escrupulosamente como esse trajecto de irrigação do corpo a que o sangue procede, que até quando odiamos o fazemos com um intenso e inequívoco ser em dadação. Não somos feitos de ódio. O ódio não é mais do que um instrumento ideológico da exploração de um ser humano por outro ser humano. O ódio é a política e a política no seu estado mais miserável, mais policial, mais militarista. O ódio é de tal forma a encarnação da mentira e da demagogia que é capaz de passar uma manhã, uma tarde, um dia, até uma vida, a convencer-nos da sua essencialidade para a vida que vivemos. É incansável o trabalho de convencimento que o ódio faz a um espírito recrutando-o para junto de si. E isso só acontece porque na verdade ele é o mais supérfluo dos estados. O que se passa, e isso é tão terrivel quanto verdadeiro, e porque essa é não a nossa noite mas as nossas trevas, o que se passa é que como tudo em nós tende para o amor, até quando olhamos o ódio o fazemos com aquele desígnio de amantes que nunca nos abandona, e por isso tendemos a não distinguir o odioso do ódio, do odiar. Odiamos como amantes e todos sabemos o poder terrível e indestrutível dessa nossa condição. Tu ouviste-me bem. Eu disse sempre. Deveremos desodiar sempre. Amar intensa, desabrida e apaixonadamente. Porque é a única coisa verdadeiramente genuina que somos capazes de fazer. Até mesmo quando odiamos.

4 comentários:

c.bruno disse...

Odiar é demasiado cansativo. Não nos resta escolha senão amar (que é cansativo à mesma...) *

Anónimo disse...

Não estou tão certa das suas certezas, ou então tive menos sorte e cruzei-me com o ódio mais vezes, embora para mim e para os que amo sempre tenha preferido guardar o amor.

Mónica (em Campanhã) disse...

as tuas palavras encontram (facilmente, apetece dizer) a verdade profunda. odiar ocupa demasiado espaço. a própria raiva, a ira: estéreis mas volumosas.

nana disse...

you bet.......