domingo, abril 29, 2007
Da degenerescência das coisas substantivas
Há coisas que não se deveriam escrever, outras que não se deveriam ler. Mas já que as escrevemos e as lemos, fique-nos ao menos um consolo: há ainda um 25 de Abril que nos divide o que, para nós que escrevemos em blogues, não deixa de ser promissor. É claro que, sobre esta questão, o discurso de Paulo Rangel, o principal talvez nos escape entre os dedos e talvez se resuma a um argumento do Luís ( se o próprio lhe prestou a devida atenção é outra questão): " a intervenção de Paulo Rangel é um acto esquizofrénico em relação à actuação do Governo e do seu próprio partido". Ou seja, a intervenção de Rangel enquanto ataque de um deputado da bancada do PSD ao Governo acaba por afundar-se na mera retórica da chincana política e aí a ideia de que aquilo confere dignidade a alguma coisa parece totalmente excêntrica. Dizer que "nunca como hoje se sentiu uma tão grande apetência do poder executivo para conhecer, seduzir e influenciar a agenda mediática" tende, sorrateiramente para a demagogia. O que é o hoje? O hoje de Sócrates? O hoje da sociedade contemporânea, onde integramos a actuação política dos principais partidos? O hoje de Paulo Portas e Durão Barroso onde ainda hoje não se sabe - saber-se-á alguma vez para além da dulcíssima suspeita que se tornou amante de quase todos os nossos actos políticos?- até onde o controlo nas secretas, da agenda mediática, do combate político assassino, condicionou a República?
O mais grave de tudo isto é que Paulo Rangel não tendo razão, falou de coisas verdadeiras, coisas que nos deveriam preocupar a todos, coisas para as quais não nos basta a nossa preocupação. Eu não sei explicar isto muito bem mas é mais ao menos assim o que eu penso: estamos a discutir o nosso tempo com o aparato ideológico que herdámos. Só que o nosso tempo, naquilo que ele tem de mais perturbador, já não é este mas o outro que neste se anuncia. Teremos por isso de o discutir com instrumentos ideológicos desse outro tempo que já hoje se anuncia ou então nunca perceberemos nada daquilo que se passa à nossa volta. Parece díficil? O mais complicado ainda está para vir: para construirmos os instrumentos ideológicos que nos ajudarão a compreender o tempo que se está a forjar nas horas, nos minutos e nos segundos que aqui e agora são, temos de utilizar os esquemas ideológicos que temos arreigados dentro de nós. Já parece suficientemente difícil a tarefa? Ainda não é nada. Vamos lá ao nosso aparato ideológico: ele tem lá dentro um lado A e um lado B. O lado A é o da conservação da tribo através dos trabalhos e ofícios de manutenção do paradigma político, seja ele qual for. O lado B é o da sua superação. É a destituição da tribo, a ideia de comunidade inter-tribal. Conhecemos o exemplo de Gorbachov. Cresceu dentro do partido, ascendeu ao poder como voz do lado A e tornou-se uma referência mundial a partir do momento em que organizou o seu discurso político a partir do lado B. No outro dia tentei aflorar a questão quando falei da forma como todos nós interiorizamos distraidamente o modus operandi totalitário. Sócrates, Portas, Durão, não têm importância nenhuma neste contexto, não é por eles que chegaremos às evidências necessárias. Pelo contrário. Como estamos a construir o totalitarismo em democracia, o que Sócrates avançar no domínio do controlo totalitário sobre a informação que dispomos, que colocamos disponível, será usufuido por um Rangel, um Paulo Rangel que nessa altura já não terá dignidade nenhuma e terá uma revisão em alta das suas gravatas, dos seus fatos, e tudo isso condizirá, não tenhamos disso alguma dúvida, com a estética vigente na época. Não adianta queixarmo-nos. É assim. Cavaco Silva absteve-se no tratado de adesão e foi o primeiro governante a tirar reais dividendos políticos da nossa integração comunitária. Sendo assim o discurso de Rangel é tão importante como a sua gravata descoincidente. Querer que nós vejamos Sócrates como o Grande Ditador - e ainda por cima usando retórica de contrabando como a alusão aos recentes casos mediáticos que envolveram o primeiro-ministro - é um disparate tão grande que só terá alguma produtividade enquanto discurso de manutenção da tribo, mas que, como todos os discursos de tipo A, servem exclusivamente para isso, para esse reforço tribal.
O que o que eu quero dizer é - e não façam ainda festa nem festim da minha incapacidade de explicar o que eu quero dizer - que deveremos analisar o totalitarismo não à luz das antigas permissas ideológicas ( que nos fazem identificá-lo automaticamente com as derivas fascistas e comunistas) mas com uma construção possível nas sociedades democráticas. Politicamente estamos protegidos ideologicamente das derivas totalitárias, mas a Constituição nada nos diz, nem podia dizer, sobre a aventura da totalidade que emerge sobre cada um de nós enquanto sujeito político. Porque por mais que não o pensemos, os nossos mais pequenos actos quotidianos estão carregados de uma dimensão política. É sobre esse paradigma, o da aventura da totalidade, que deveremos discutir esta tentação do Estado controlar toda a informação, ter uma eficiência absoluta sobre os processos de controlo dessa informação. Porque o Estado socrático não se legitima sobre uma qualquer aspiração de mudança de regime - querer imaginá-lo é chegar ao rídiculo de perspectivar Sócrates como aqueles governantes terceiro-mundistas que chegam ao poder democraticamente e se dedicam depois a construir as teias e os tentáculos de um poder discricionário e totalitário - e sim sobre aquela função que lhe parece intrínseca, servir melhor a comunidade. A construção política da aventura da totalidade é apenas um dos seus aspectos. Há anos que qualquer um de nós já se excita com essa aventura de poder estar sempre em todo o lado e em toda a parte. A omnipresença e a omnisciência são duas das condições que qualquer um de nós pede, que digo eu?, pede?!, exige, ao deus tecnológico. Hoje, ao contrário de ontem, o totalitarismo não parece um dispositivo político e ideológico claro, que identifique sem margem para dúvidas opressores e oprimidos. Nem existe repressão, no sentido que nos habituámos a conferir. O que existe hoje é mais suave, chama-se contenção. O Estado, seja o Barroso, o Socrático, contêm as hordas, as tribos selvagens e aí age num pressuposto securitário que encontra eco dentro de nós. Existe antes uma euforia do sujeito entregue à aventura da totalidade. Eu concordo com todos os que se levantarem para exprimirem a sua perplexidade pela forma como esta aventura parece incapaz de nos fazer chegar a uma ideia de felicidade que, como mnemónica de outros tempos, alguns de nós ainda têm dentro de si. E que por isso não a devem esquecer. Devem ser dela testemunho. Para que a perplexidade se instale e a inquietação ainda seja traduzível como sinónimo de felicidade. Há também que não perder de vista isto: a ligação, a conexão, a integração, qualidades que, euforicamente, estamos a explorar hoje, são também elas condições que parecem realizar-se, de uma forma mais plena, ou de uma forma que antes não conhecemos, na aventura da totalidade. Estas atitudes do Estado, que parecem tiques herdados dos totalitarismos tradicionais, não são mais do que emanações da imersão do viver comunitário na aventura da totalidade onde cada um de nós já cedeu, a troco da integração, da conexão, os seus privilégios identitários para um enorme banco comum de dados.
Não vejam nas minhas palavras alguma luz. Eu não sei pensar o que aí vem. Ainda só compreendi a inutilidade de insistirmos em pensá-lo a partir do que já passou.
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2 comentários:
Combinado Joaquim. Vou fazer um esforço. A partir do futuro. Depois digo. Não comeces já com festas e foguetes. Abraços
nem festas, nem foguetes nem romarias. fico à tua espera, amigo! abraços
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