quarta-feira, abril 18, 2007

A doença como metáfora

" A doença é o lado sombrio da vida, uma cidadania bem pesada. Ao nascer, todos nós adquirimos uma dupla cidadania.: a do reino da saúde e a do reino da doença. E muito embora todos preferíssemos usar o bom passaporte, mais tarde ou mais cedo cada um de nós se vê obrigado, ainda que momentaneamente, a identificar-se como cidadão da outra zona.
O meu propósito não é tanto descrever o que significa relamente emigrar para o reino da doença e aí viver, mas antes as fantasias punitivas ou sentimentais que se constroem acerca dessa situação: não uma geografia real, mas antes estereótipos de carácter nacional. O meu tema não é a doença física em si, mas o uso que se faz da doença como figura ou metáfora.
A minha tese é de que a doença não é uma metáfora, e o modo mais honesto de olhar a doença - e o modo mais são de estar doente - é o olhar mais depurado, mais resistente ao pensamento metafórico. Mas é praticamente impossível fixarmos resid~encia no reino da doença incontaminados pelas sinistras metáforas que lhe desenharam a paisagem. Elucidar tais metáforas, sacudir o seu jugo, constitui o objectivo deste estudo. .../... Embora o modo como a mistificação de uma doença se processa tenha lugar num quadro de expectativas renovadas, a doença propriamente dita (a tuberculose antes, o cancro hoje) desperta um tipo de terrores completamente obsoletos.
Qualquer doença que seja vista como um mistério e seja profundamente temida será considerada moralmente, se não literalmente, contagiosa. E assim, um número surpreendentemente vastod e pessoas que sofrem de cancro ver-se-ão rejeitados por parentes e amigos, tornando-se objecto de medidas de descontaminação pelas pessoas da família, como se o cancro, à semelhança da tuberculose, fosse uma doença contagiosa. O contacto com alguém vitima de uma doença vista como um mal misterioso éinevitavelmente sentido como uma transgressão: pior, como a violação de um tabu. Os próprios nomes de tais doenças são considerados dotados de um poder mágico. "
A Doença como Metáfora, Susan Sontag, Quetzal Editores, 1998. Este ensaio foi escrito em 1978, quando a autora convalescia de um cancro. Anos mais tarde, com o aparecimento da SIDA, Sontag escreveria A Sida e as suas Metáforas.

1 comentário:

IPQ disse...

Embora eu ache que esse texto está datado, porque o cancro não tem hoje o estigma que tinha, a verdade é que as pessoas ainda continuam a morrer de doença prolongada, coisa que muito me incomoda.