quinta-feira, abril 12, 2007
A Grande Suspeita
Acabei por não ver a entrevista de Sócrates. Tenho andado por isso a ler alguns bloggers. E comprei o Público porque, já que tinha sido ele a nascente deste caso, queria também ver como é que ele se satisfizera, ou não, com os esclarecimentos de Sócrates.
Formalmente o Público dedica as suas quatro páginas iniciais ao caso. Nas duas primeiras Ricardo Dias Felner acompanha a entrevista confrontando-a com os seus possíveis, ou não, esclarecimentos, em relação àquilo que tinha sido matéria noticiada. A sua peça tem um lead que destaca o reconhecimento por Sócrates de que a existência de dúvidas era legítima. Isabel Leiria assina aquilo a que a edição chama de reportagem sobre a entrevista, a forma como decorreu e o que aconteceu no local. Depois convida Barreto, Pulido Valente, Miguel Gaspar e Mexia para comentarem. Aos jornalistas cabe o papel de serem mais isentos e conseguem-no, especialmente Pedro Mexia que fala apenas do que, na sua opinião, aconteceu. Miguel Gaspar também o faz mas divide-se entre a critica ao formato da entrevista e a critica ao esvaziamento ideológico do primeiro ministro, que dá o tom ao seu comentário, através da sua piada inicial a propósito da forma como Sócrates termina uma missiva. Pulido Valente não está inspirado e faz um textinho sem chama, à medida daquilo que ele tanto gosta de nos outros zurzir. António Barreto simplesmente não se percebe. Centrando a sua retórica naquilo que um primeiro ministro deve saber reconhecer sobre o que é possível ou não a um deputado ou membro do governo fazer, tem, entre outros, este argumento central, do qual não descortinei lógica: " um deputado ou um membro do governo...não podem nem devem apresentar-se como candidatos a cursos pós-laborais que lhes confiram o estatuto académico a que aspiram." No final da página 3, num lettring quase inofensivo, ou até mesmo envergonhado, os já recorrentes "dixit" de uma grande entrevista. O que é verdadeiramente revelador deste padrão de comportamento que se instalou neste triste caso: todos no Público queriam que o primeiro-ministro falasse, o seu silêncio foi de chumbo, mas quando ele falou atribuiram ao que ele disse a importância de uma pequena mancha no canto inferior da página e, não fosse já suficientemente insignificante, com um lettring que a desprezava. O espectáculo é de uma tristeza confrangedora. De um lado o primeiro-ministro a querer gerir o melhor possível a sua imagem, sendo absolutamente incredível quando diz que deu tempo para que o processo contra a Independente seguisse o seu caminho. É que um primeiro-ministro que telefona sete ou oito vezes para o Director do Público está, naturalmente, obcecado com as dimensões políticas que este caso pode ter. E é natural que o esteja. Não é preciso nenhuma teoria conspirativa para se perceber que este caso poderia tornar-se numa morte política do primeiro-ministro. Não devia ser assim, deveremos todos reflectir porque é que o é, mas é verdadeiramente hipócrita que se critique a entrevista por se ter tornado naquilo que todos nós esperávamos que fosse: a confrontação do engenheiro técnico José Sócrates com os seus eventuais pecadilhos curriculares. Qual Ota, qual serviço de Urgências, qual Educação, qual Saúde, qual Economia. Nós queríamos novela. E queremos mais, como o lider do PSD, que, para além de acusar de falta de carácter o primeiro-ministro - o que reduziria ao grau zero a possibilidade de alguma discussão política entre os dois se isto da ética política não fosse um jogo a feijões - não se sente esclarecido e quer agora que o primeiro-ministro peça a uma entidade independente do Governo que audite a sua situação académica. É um absurdo, e para mal do radicalismo de Marques Mendes, a menos que se consiga investigar alguma conexão perigosa entre o título académico de Sócrates e um polvo envolvendo o Partido Socialista e a Universidade, esta história parece ter morrido aqui.
Da leitura dos blogues dou-me conta do autêntico clima de suspeição que envolve todo este caso. Não é no domínio do casuístico, do que acontece, mas na forma como alguns acontecimentos se conectam e articulam uns com os outros, uns de forma mais espontânea, outros de forma mais velada, sobrevivendo à custa daquela condição que vivifica a maior parte das nossas novelas públicas: o facto de não se conseguir provar que existe também não quer dizer que não exista. E, por outro lado, são naturalmente valorizáveis alguns indicadores de relações de proximidade, cuja mera existência levanta suspeitas. É por isso que numa sociedade altamente mediatizada onde tudo pode ser escrutinado, temos de saber conviver com a suspeita. Tanto de um lado como do outro. Mas uma coisa será a a suspeita, a dúvida, outra será o forjar de uma história. Por exemplo, é altamente susceptível de provocar suspeita a ligação do referido professor a Armando Vara, ao Partido Socialista, aos negócios na região de onde o actual primeiro-ministro é natural. Até porque o serem servidos no mesmo plano informativo fornece-lhes automaticamente um enunciado narrativo comum. Há que o assumir.
Da mesma forma é igualmente suspeito que um jornal como o Público apresente esse tal enunciado narrativo sem grande consistência (lembremo-nos de como nos foi servido inicialmente) quando uns tempos antes o grupo proprietário do jornal se tinha manifestado profundamente desiludido com o Governo por causa do insucesso de uma iniciativa empresarial que ela tomou. É claro que ninguém minimamente sensato deixará de ter suspeitas e suspeições sobre essa eventual conexão perigosa. Na cabeça de quem vê estas coisas a preto e branco, e são cada vez mais, são tão legítimas as suspeitas de que Belmiro de Azevedo, José Manuel Fernandes, Ricardo Dias Felner possam estar ilegitimamente conectados em todo este processo, como as de que José Sócrates, Luis Arouca, Armando Vara e o professor das quatro cadeiras o possam estar também. É claro que se acharmos que Belmiro de Azevedo, José Manuel Fernandes, Ricardo Dias Felner * não estão ilegitimamente conectados poderemos tender para a ideia de que o mesmo não se passa com os outros. E o contrário. Estamos mais predispostos a pensar que eles estão a promover uma vingança contra José Sócrates se tendermos para a ideia de que nada de ilegítimo conecta Sócrates com o seu antigo professor, com Luís Arouca ou com o próprio Armando Vara.
Só que há aqui algo mais complicado: hoje chegámos a um momento onde parece ser insensato não ter suspeitas ou suspeições de alguma espécie. O pior não é tudo poder ser escrutinado. Que o seja. Escrutinado, questionado, interpelado. O problema não é esse. O problema é o elevado rendimento que a suspeição em forma de argumento parece ter. É um produto branco do pensamento social contemporâneo e abriga-se na impunidade a que as fábricas ideológicas têm ainda hoje devido à inexistência de controle de qualidade nos seus processos de fabricação. Aliás, esta frase parece, para a maior parte de nós e do nosso viver, uma piada, uma anedota. Controle de qualidade dos processos de fabricação das nossas ideias?!! É mesmo assim. Suspeitamos que Marques Mendes está apenas interessado em atirar lama para Sócrates, tentando colocar aí o centro do debate político, suspeitamos que José Sócrates telefonou a metade dos directores de jornais deste país para os convencer das fraquezas da história que anda por aí a ser urdida, suspeitamos do professor de Sócrates e das suas ligações a Vara e a umas empresas da Covilhã, suspeitamos da SONAE e do seu instinto de vingança, suspeitamos de José Manuel Fernandes, e porque a suspeita nos está na massa do sangue, somos até capazes de suspeitar do jornalista Ricardo Dias Felner .
Em abono das nossas teses temos todos os argumentos: os telefonemas de Sócrates para os jornais, o tirar e pôr da informação online sobre os seus curriculos, os casos recentes com a Independente, o desagrado de Belmiro, o abalado prestígio e credibilidade de José Manuel Fernandes na imprensa portuguesa, a forma empolada como apareceram as primeiras investigações do jornalista Ricardo Dias Felner, os antecedentes políticos de Armando Vara, as ligações empresariais do professor de Sócrates.
Como é que saímos daqui? Talvez seja uma ideia errada, a de sair. Se isto é o pântano, qualquer movimento para sairmos tenderá a afundarmo-nos mais. Foi uma péssima ideia termos vindo para aqui assentar arraiais, temos de reconhecer, mas aqui chegados, como é que sobreviveremos não ao pântano, mas no pantâno? Talvez seja boa ideia drenar alguns terrenos. Ou seja, habituarmo-nos à ideia de que o pior não é a suspeita, nem a suspeição. É aceitarmo-la enquanto argumento.
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* Não fique aqui a suspeita sobre o seu trabalho enquanto jornalista. É um trabalho de vulto a que ele se vem dedicando e tem-no feito bem, teimosamente, com brio. Tinha aliás há muito pouco tempo feito um excelente retrato sobre o primeiro-ministro. Mas não embarquemos em arco: é preciso um pouco mais para que o bom trabalho de um jornalista se traduza num bom trabalho jornalístico.
Blogoteca (Ligaçoes retiradas de Blogo Existo):
José Sócrates, de Tiago Barbosa Ribeiro / A inversão do ónus da prova, de Paulo Gorjão / Provas, inversões e outras confusões, de Miguel Abrantes / Salvem o jornalismo, de Rui Cerdeira Branco / Em que ficamos?, de Eduardo Pitta / A minha opinião, de Lutz Bruckelmann / Deprimi..., por Cenas Obscenas / Queen Anne is dead, de Filipe Nunes Vicente / Quando os jornais dependem da colaboração dos actores políticos, de Alexandre Guerra / Questões políticas passageiras e questões de Estado, de Rui Pena Pires; A tempestade de João Villalobos; E Agora José?, pela Susana Bês.
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1 comentário:
Ainda não perceberam que o povo, o povo que vota está-se nas tintas para essas intrigas, acreditou em Sócrates e não aprecia nada ataques pessoais? Vejam as próximas sondagens...
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