segunda-feira, maio 07, 2007
Conversa de um homem nascido em Maio (1)
Uma amiga deu-me o mote: festa de desaniversário. O José Mário Branco gritou um dia, quero desnascer. Eu não diria o mesmo. Apetecia-me apenas uma máquina do tempo para avivar a memória das cores, dos sons, dos ambientes da minha vida. Para que fosse mais rápido ir e regressar. É puro saboreio e prazer o ir, mas demora muito. Essa luta contra o tempo em que se constitui uma caminhada, mesmo que pareça muitas vezes arrastada por um atavismo descontente. Nos últimos tempos tenho aproveitado o tempo que tenho para dormir para fazer algumas dessas viagens. Chamo hoje sábios àqueles que se devotam a tentar tornar as primeiras idades, lugares de uma experiência sensível. São construtores de novos mundos. Até aos dezoito anos andamos tão entretidos na aventura identitária que nem desconfiamos da revelação que nos será dada mais tarde: quando ainda temos tudo para viver, já moldámos em grande parte o modo como iremos viver.l
Quando ainda temos tudo para viver, já moldámos em grande parte o modo como iremos viver. Eu, porque Super Homem não era naquele tempo profissão tributável, queria ser advogado. Mas um dia os meus pais quiseram que o meu irmão mais velho fosse violinista. Ou melhor, aprendesse a tocar violino. Ainda hoje me lembro da minha revolução interior para tentar captar a estima dos meus pais: também quero ser artista. Andei numa hesitação, numa angústia terrível. Coleccionador de azedas, de papoilas, de amoras não me parecia ser uma verdadeira arte. O que havia de fazer? Tempos a seguir, que eu não sei explicar quando, fui ver o Teatro do Gerifalto ao Monumental. Viemos de Mafra para isso. Não me peçam pormenores. Talvez tenham dado uns bilhetes ao meu pai, não sei. Ficámos no piolho, no galinheiro. Ouvia-se lá em baixo um recitativo indistinto de um auto vicentino. Não me lembro de mais nada. Só me recordo que a certa altura senti uma evidência, um chamamento: eu iria ser actor. Foi tão forte o chamamento que pouco tempo mais tarde, numa récita escolar em que eu só tinha que marchar com uma adaga de madeira presa à cintura e um chapéu de soldadinho feito com papel de jornal em cima da toleima, senti um tal peso da responsabilidade que passei o tempo apanhado por um ataque monumental de riso, expressão de um incontrolável nervoso miudinho.
Eu era assim, uma vitima do incontrolável riso, não muitas vezes, mas em situações sempre muito comprometedoras. Uma vez fiz parte de um pelotão de fuzilados pelas reguadas da D. Henriqueta, que nem era minha professora, mas era a má da escola, e ainda por cima a Senhora Directora. Não tinhamos feito nada de especialmente grave, a D. Amália tinha faltado e nós, decididos a fazer da gazeta um dia memorável, saltáramos o muro que nos separava do pátio das raparigas. Não mostrámos pilas, não fizémos gestos obscenos, nem soletrámos palavrões. Apenas nos escancarámos diante das minudências femininas que se vislumbravam pelo minúsculo recorte da fechadura da porta da casa de banho. Elas até estavam a gostar. Menos uma, a filha da D. Marcolina. E lá fomos lá para a sala da D. Henriqueta. O meu irmão mais velho estava lá dentro, era aluno dela. Nós fizémos uma fila que ía da porta da sala até à secretária, e tal como se fosse a distribuição do pão por deus , íamos desfilando com um correctivo aplicado na mão direita. Três reguadas públicas, não mais e naquele dia ela até estava especialmente disciplicente. Só que quando chega a minha vez desmancho-me a rir. Lá volto atrás e ela repete o correctivo. E eu a rir. Mais uma e outra vez vez. De repente a minha mão direita já era pequena para tanta vermelhidão e tanta dor, eu ria e chorava ao mesmo tempo, vai na mão esquerda. Eu nunca deixei de rir. Felizmente a D. Henriqueta sentiu-se vingada quando as lágrimas que me caíam na face eram tão pesadas que, como uma cortina, tapavam o riso que teimava em desconcertar-me.
Nunca mais deixei de querer ser actor. O meu tio dizia-me que eu tinha má dicção, que devia procurar outra coisa, mas aos quinze anos tive opção de teatro na Escola e, na récita escolar, mais uma vez, fiz figura com um poema do Brecht. Parecias um profissional, diziam-me colegas, amigos, vingando-me de todas as desconfianças por causa de não dizer bem os érres e de, devido a um desvio do septo, nasalar muito as palavras. Lembro-me de ter voltado ao Monumental, mas agora do lado de fora. Na altura estava lá O Zero à Esquerda, com a Laura Alves e o Paulo Renato. O cartaz, pintado, como já não se usa, com as letras garrafais do nome dos actores. E eu no lugar do Paulo Renato comecei a ver, Joaquim Paulo. Era eu. Dali para o estrelato, a fama, era um pulinho.
Eu queria ser actor contra todos e contra tudo, especialmente a minha própria natureza. Para além da dicção, da voz nasalada, eu era brutalmente tímido, introspectivo, sonhador, virado para a realização na terra dos sonhos.
E como era muito perseverante, outra característica forjada num episódio da minha infância, eu iria conseguir. Estava a terminar o Secundário, tinha feito dezoito anos, amparado por uma amiga que era bailarina, inscrevi-me num curso da Comuna. Aí descobri, para além da amizade, dos primeiros namoros não inscritos na platonia vigente, uma outra dimensão do teatro: a revelação, o querer ser. Estreei-me como amador numa colectividade de Xabregas com um texto de Tchecov, O Canto do Cisne, entrecruzado com um poema de Herberto Hélder, o Poemacto. Ainda hoje me lembro da angústia, das dores de estomâgo. Era eu contra mim próprio e pouco tempo mais tarde profissionalizei-me num pequeno grupo dirigido pelo Horácio Manuel, um colectivo que trabalhava totalmente virado para o público e espaço escolar. Nunca fui um bom actor embora, paradoxalmente, o teatro me tenha ajudado a desenvolver qualidades humanas que brilhavam performativamente, em cena. E durou pouco esta vontade de ser actor. No final dos anos oitenta, se ainda tivesse ilusões de que não queria ser actor profissional, perdi-as completamente ao recusar duas propostas de trabalho, uma para uma peça a ser encenada com o Castro Guedes em Vila Real, outra para uma digressão à Suiça com o Teatro em Movimento.
[continua]
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5 comentários:
Parabéns!
Maio ainda agora começou, Cristina...ainda não, ainda não...:)
Isso não interessa nada. Maio é bonito todos os dias ;)
por agora feliz desaniversário e venham mais destas crónicas
Paulo Renato não entrava na peça "Um Zero à Esquerda". O elenco masculino era composto por Rudolfo Neves e Eduardo Viana
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