Outras plantações: oliveira, flor, Chico. Obrigado
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quinta-feira, maio 22, 2008
Plantar de manhã
São quase doze horas. No meu quintal, rodeada por alfaces atónitas por esta mestiçagem, desde há minutos, uma nespereira. Também, no canto das coisas únicas, chá de príncipe. Um acto de puro egoísmo, necessário ao meu metabolismo destas primeiras horas da minha vida em maio: guardo para mim o sabor, o cheiro, a presença. Hei-de voltar, mas voltarei depois ou com as palavras posteriores.
segunda-feira, maio 12, 2008
Homem nascido em Maio
eu precisava de um maio assim. não me importa a aragem, um pouco fria. não me importa a casa vazia desde que a casa vazia seja uma casa cheia de vazio. não me importo. sou de maio e em maio floresço sempre. começo por esvaziar o vazio da casa com o teu riso. quando te canto e tu me dizes como se não existisses, ou não fosses real, mas o meu sonho transmutado, não pares de cantar. é em maio e de repente. parece-me que tudo isto é sonho e que eu não preciso de morrer para ele ser real enquanto sonho. estou a desfazer-me em ternura. por vezes acontece-me. tudo o que em mim é quimica, molécula, substância conflui numa única sensação: ternura. mataria a linguagem para o descrever com mais exactidão: aos quarenta e cinco anos homem nascido em maio rebenta de afecto. desfiz-me do ódio ao mesmo tempo que me livrei da minha ideia de superioridade. passei por um deserto. muitas vezes ainda olho para a minha descrença, para o meu não saber, para a minha ausência e acontece-me duvidar. duvido do lugar e do modo. olho para a certeza dos outros, para a certeza dos lugares dos outros, para a certeza das coisas dos outros e duvido. é um repente mas é. será que eu não estou apenas a encher o meu vazio?, pergunto-me. ontem estava a compôr mentalmente a mesa do meu jantar de aniversário e entristeci-me rapidamente. uma pequena núvem passou-me por dentro da menina dos olhos. o meu amigo Pedro não vai estar lá. como sempre esteve. nem a Zé. nem a Cláudia. os meus mortos embora me entristeçam, como se um leve entardecer viesse de repente ao dia cedo que ainda é, fazem-me mais do lado de cá, da vida. mesmo não percebendo nada. mas o que é perceber? gastar o tempo a dizer acho que, penso que, na minha opinião? cheguei a um lugar e a um modo em que a terra é clarividente sobre o destino a dar à linguagem: silêncio. um silêncio a ferver.
sexta-feira, maio 25, 2007
Manifestação em Maio
Todas as janelas abertas. Não sei se de par em par. Cada um sabe de si. Digo apenas, o suficiente para que Maio se assome, saia e se liberte.
Ainda em Maio
Tenho os dedos cheios de vontade de tocar. Eu sou vontade. A chuva vem a despropósito mas até ela me agarra os sentidos pelos cabelos e me acorda. Desperta-me. Há pouco deitaste a tua cabeça no meu ombro e eu fiquei a estarrecer-me, a pensar, ainda bem que chove, ainda bem que demora, ainda bem que o eléctrico parou enquanto ouvimos os dois Chico e Caetano. Os meus olhos estão cheios de tesão. Descubro-o quando cerro as pálpebras. Quando viajo pelos mundos interiores que contenho dentro de mim. Há um acaso festivo, rei, na minha vida. Os meus sentidos eléctricos. A notícia não é o mais importante. Descobrir que a notícia não é o mais importante tem alguma relevância mas mesmo assim, coisa pouca. A única coisa que realmente conta é a festa. E, se nos dermos conta, quase tudo é festa. Quase tudo importa.
domingo, maio 20, 2007
Conversa de um homem nascido em Maio (2)
Dou-me conta de que não estarás cá nos meus anos. Fico ligeiramente irritado. Depois apercebo-me de que vai fazer seis meses que ficaram pela Patagónia e assumo que nunca mais estarás por cá, nem nos meus anos, nem nos vossos, nunca. A irritação cresce. Talvez seja esta uma homenagem muito particular que te faço: nunca preencherei o vazio que a tua ausência abriu. Às vezes passo na Rua da Graça, olho para cima, agora há uma protecção no terraço, talvez seja sinal de que vai haver crianças naquela casa, imagina-las? A descerem e a subirem as escadas interiores? A povoarem de risos as paredes? Até o Pedro já sabe que não voltas. A amiga do pai da caneta sempre em pé, é assim que te chama, lembrando-se do dia em que lhe ofereceste uma caneta que se mantinha sempre direita. E sabe que as máscaras têm a tua cara. Já não consigo pensar-te. Estes seis meses foram muito duros. Para nós todos, mas para alguns de nós em especial. Dias houve em que eu pensei que ía entristecer de vez. Talvez tenha muitas vezes projectado a vossa morte na minha vida, talvez tenha sido isso que aconteceu. Tu sabes como é. Ao princípio há uma descontinuidade narrativa entre a vida e a morte: nós aqui, vocês em nenhures. A ideia assenta numa outra, a que só existe aquilo que é da ordem da manifestação. A morte não existe, aquilo a que chamamos morte não é mais do que a vida em acto final de manifestação. A morte é uma convenção de vivos, para vivos, entre vivos. Se houver vida para além do momento em que morremos isso só será possível porque afinal, não teremos morrido, teremos apenas transformado-nos em outra coisa. Mas isso para nós não é estranho: toda a nossa existência corporéa é um acto de transformação permanente. Isto é apenas uma maneira de contar uma história em que me faltarão sempre os pontos essenciais. Há outras. As religiões por exemplo não aceitam esta descontinuidade narrativa. Há ainda uma espiritualidade desavinda com as religiões no activo que também fala, também discursa. Eu por exemplo, ao falar-te assim depois de vocês terem ficado pelo último sitio vivo que conhecemos no mapa físico do mundo, estarei também a abrir-me a essa espiritualidade. É claro que eu poderei dizer, defendendo-me dos territórios sempre sensíveis da loucura, que estou apenas a recriar-te através de um discurso ficcional e que estou apenas a reconhecer a existência que tu, que vocês ainda têm em mim. Eu disse-o uma vez, não me tornarei crente para conseguir que voltem. Nem louco: na esplanada não pedirei duas greens. Mas mudei. Mudei por dentro. Há um lugar, que não é neste mundo mas será ainda, deste mundo. Talvez seja uma abertura ao religioso, um lugar despovoado de deuses. Não me interessa nomes. É tanto uma abertura ao religioso como uma irrupção do mágico, do artístico. Sei apenas, é um lugar onde posso estar contigo. Não é um sepulcro. Estão lá todos os meus mortos mas não é um sepulcro. É um lugar. Habita-o também todo o meu corpus não corpóreo. As minhas memórias, as minhas ideias, mesmo as mais amarelecidas e gastas pelo tempo. Eu não percebia, ou não percebi logo, que esta vontade de me recolher, de me casar comigo, não era uma abertura à tristeza, à depressão. Não era desejo fúnebre. Era um desejo de lugar, desse lugar. Esse lugar onde me preenchi de forma imoderada na minha infância e na minha juventude, onde me povoei de toda a solidão de que um homem é capaz de guardar até ao limite da loucura. Lugares abertos nas páginas dos livros esvoaçantes. Nos sonhos próprios, produzidos incessantemente. Eu não sabia que os sonhos explicavam esta minha necessidade de estar sempre a interpretar o mundo, o meu mundo, o que me acontecia. Se o soubesse tinha sonhado de outro modo. Menos avidamente talvez mas, paradoxalmente, com mais avidez do mundo que um sonho pode conter. É para lá, para esse lugar do material e do imaterial que vou agora. O realismo é uma prisão, a matéria é um cárcere dos sentidos. A nossa educação preparou-nos para muitos heroísmos mas não nos terá alertado suficientemente para a importância de deixarmos o material respirar, libertar-se da sua condição tautológica.
segunda-feira, maio 07, 2007
Conversa de um homem nascido em Maio (1)
Uma amiga deu-me o mote: festa de desaniversário. O José Mário Branco gritou um dia, quero desnascer. Eu não diria o mesmo. Apetecia-me apenas uma máquina do tempo para avivar a memória das cores, dos sons, dos ambientes da minha vida. Para que fosse mais rápido ir e regressar. É puro saboreio e prazer o ir, mas demora muito. Essa luta contra o tempo em que se constitui uma caminhada, mesmo que pareça muitas vezes arrastada por um atavismo descontente. Nos últimos tempos tenho aproveitado o tempo que tenho para dormir para fazer algumas dessas viagens. Chamo hoje sábios àqueles que se devotam a tentar tornar as primeiras idades, lugares de uma experiência sensível. São construtores de novos mundos. Até aos dezoito anos andamos tão entretidos na aventura identitária que nem desconfiamos da revelação que nos será dada mais tarde: quando ainda temos tudo para viver, já moldámos em grande parte o modo como iremos viver.l
Quando ainda temos tudo para viver, já moldámos em grande parte o modo como iremos viver. Eu, porque Super Homem não era naquele tempo profissão tributável, queria ser advogado. Mas um dia os meus pais quiseram que o meu irmão mais velho fosse violinista. Ou melhor, aprendesse a tocar violino. Ainda hoje me lembro da minha revolução interior para tentar captar a estima dos meus pais: também quero ser artista. Andei numa hesitação, numa angústia terrível. Coleccionador de azedas, de papoilas, de amoras não me parecia ser uma verdadeira arte. O que havia de fazer? Tempos a seguir, que eu não sei explicar quando, fui ver o Teatro do Gerifalto ao Monumental. Viemos de Mafra para isso. Não me peçam pormenores. Talvez tenham dado uns bilhetes ao meu pai, não sei. Ficámos no piolho, no galinheiro. Ouvia-se lá em baixo um recitativo indistinto de um auto vicentino. Não me lembro de mais nada. Só me recordo que a certa altura senti uma evidência, um chamamento: eu iria ser actor. Foi tão forte o chamamento que pouco tempo mais tarde, numa récita escolar em que eu só tinha que marchar com uma adaga de madeira presa à cintura e um chapéu de soldadinho feito com papel de jornal em cima da toleima, senti um tal peso da responsabilidade que passei o tempo apanhado por um ataque monumental de riso, expressão de um incontrolável nervoso miudinho.
Eu era assim, uma vitima do incontrolável riso, não muitas vezes, mas em situações sempre muito comprometedoras. Uma vez fiz parte de um pelotão de fuzilados pelas reguadas da D. Henriqueta, que nem era minha professora, mas era a má da escola, e ainda por cima a Senhora Directora. Não tinhamos feito nada de especialmente grave, a D. Amália tinha faltado e nós, decididos a fazer da gazeta um dia memorável, saltáramos o muro que nos separava do pátio das raparigas. Não mostrámos pilas, não fizémos gestos obscenos, nem soletrámos palavrões. Apenas nos escancarámos diante das minudências femininas que se vislumbravam pelo minúsculo recorte da fechadura da porta da casa de banho. Elas até estavam a gostar. Menos uma, a filha da D. Marcolina. E lá fomos lá para a sala da D. Henriqueta. O meu irmão mais velho estava lá dentro, era aluno dela. Nós fizémos uma fila que ía da porta da sala até à secretária, e tal como se fosse a distribuição do pão por deus , íamos desfilando com um correctivo aplicado na mão direita. Três reguadas públicas, não mais e naquele dia ela até estava especialmente disciplicente. Só que quando chega a minha vez desmancho-me a rir. Lá volto atrás e ela repete o correctivo. E eu a rir. Mais uma e outra vez vez. De repente a minha mão direita já era pequena para tanta vermelhidão e tanta dor, eu ria e chorava ao mesmo tempo, vai na mão esquerda. Eu nunca deixei de rir. Felizmente a D. Henriqueta sentiu-se vingada quando as lágrimas que me caíam na face eram tão pesadas que, como uma cortina, tapavam o riso que teimava em desconcertar-me.
Nunca mais deixei de querer ser actor. O meu tio dizia-me que eu tinha má dicção, que devia procurar outra coisa, mas aos quinze anos tive opção de teatro na Escola e, na récita escolar, mais uma vez, fiz figura com um poema do Brecht. Parecias um profissional, diziam-me colegas, amigos, vingando-me de todas as desconfianças por causa de não dizer bem os érres e de, devido a um desvio do septo, nasalar muito as palavras. Lembro-me de ter voltado ao Monumental, mas agora do lado de fora. Na altura estava lá O Zero à Esquerda, com a Laura Alves e o Paulo Renato. O cartaz, pintado, como já não se usa, com as letras garrafais do nome dos actores. E eu no lugar do Paulo Renato comecei a ver, Joaquim Paulo. Era eu. Dali para o estrelato, a fama, era um pulinho.
Eu queria ser actor contra todos e contra tudo, especialmente a minha própria natureza. Para além da dicção, da voz nasalada, eu era brutalmente tímido, introspectivo, sonhador, virado para a realização na terra dos sonhos.
E como era muito perseverante, outra característica forjada num episódio da minha infância, eu iria conseguir. Estava a terminar o Secundário, tinha feito dezoito anos, amparado por uma amiga que era bailarina, inscrevi-me num curso da Comuna. Aí descobri, para além da amizade, dos primeiros namoros não inscritos na platonia vigente, uma outra dimensão do teatro: a revelação, o querer ser. Estreei-me como amador numa colectividade de Xabregas com um texto de Tchecov, O Canto do Cisne, entrecruzado com um poema de Herberto Hélder, o Poemacto. Ainda hoje me lembro da angústia, das dores de estomâgo. Era eu contra mim próprio e pouco tempo mais tarde profissionalizei-me num pequeno grupo dirigido pelo Horácio Manuel, um colectivo que trabalhava totalmente virado para o público e espaço escolar. Nunca fui um bom actor embora, paradoxalmente, o teatro me tenha ajudado a desenvolver qualidades humanas que brilhavam performativamente, em cena. E durou pouco esta vontade de ser actor. No final dos anos oitenta, se ainda tivesse ilusões de que não queria ser actor profissional, perdi-as completamente ao recusar duas propostas de trabalho, uma para uma peça a ser encenada com o Castro Guedes em Vila Real, outra para uma digressão à Suiça com o Teatro em Movimento.
[continua]
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