segunda-feira, maio 28, 2007

Lendo nos Céus: Vénus

Pouso as mãos no teclado quando penso em escrever sobre o amor. Acontece por vezes, dada a natureza dos assuntos, ou porque eles andam amarrotados de mão em mão, de boca em boca, que a melhor forma de os abordarmos é começarmos por neles escavarmos um silêncio interior. Dou-me conta de que a ideia de amor me obriga a um verdadeiro trabalho espeleológico. É um assunto delicado. Todos nós estamos de alguma forma vinculados a uma crença arreigada e forte no amor. É das tais coisas que não adianta complicar: os nossos pais amaram-nos quando nos tiveram e depois amaram-nos para nos desterem, para nos deixarem ir e esse deixarem ir era, para eles, a manifestação do mais ditoso amor. Nós tivémos um pouco mais do que os nossos pais. Aprendemos a separar o amor da concepção. Nem sempre com grande sucesso. Ao colocarmos de um lado o sexo e do outro a procriação, ficámos com um território imenso, de ninguém, de onde desocupámos o amor, ou melhor, de onde destituímos o amor das qualidades que sempre lhe atribuimos: dádiva extrema, fusão nuclear, gratuitidade máxima. O nosso amor tornou-se industrial, fazível. Fazemos amor.
Ponho as mãos em concha e levo-as a essa matéria porosa, granular, que é o amor. Vou escavá-lo como se fosse areia. E dou-me conta que o amor se iguala à areia no modo de ser medida do tempo.
No primeiro silêncio olho para o trabalho ideológico que o amor produziu sobre o nosso modo de vida. E político. O amor é um espantoso sistema de dominação política. É claro que isto não diz nada sobre o amor. Eu não estou a dizer. Estou a escavar silêncios. Rasgo veios na areia usando a mão como se fosse uma concha-
Volto a fazer silêncio em mim: o amor é um inusitado dispositivo de coesão social, tanto mais inusitado quanto ele parece começar por uma legitimação de uma saída do indíviduo da esfera das práticas sociais mais alargadas. Fecho os olhos como se estivesse num cinema. Vejo os humanos aos pares e depois aos cachos, pequenas unidades familiares. O amor também não é isto. Continuo a não dizer nada. Não sei.
Que posso eu dizer sobre o amor? Nada. Posso, e a medo, com cautela que baste, escavar silêncios. A minha mão tem há muito a forma de uma concha.
Outro silêncio: a propagação comercial do amor permite ao comércio do amor propagar simultaneamente o comércio e o próprio amor. O amor não é um negócio e o melhor de tudo isto, e é por isso que a sociedade mercantil inventou como nenhuma outra a felicidade terrena, é que a negação do amor enquanto negócio faz florescer o negócio do amor.
O último silêncio leva-me a mão até à água. Ou pelo menos, à humidade que faz com que a areia se torne moldável. Nela escavo os corpos dos amantes. Homens e mulheres. Vénus é um@ deusa e um deus longamente depurad@ discurso sobre o género. Não interessa verdadeiramente se são homens ou mulheres. A libertação de costumes e a evolução da ciência e da indústria do sexo fazem com que aquilo que os homens e as mulheres podem fazer uns com os outros possa libertar-se das condicionantes do género. Disse corpos dos amantes: se o amor já ultrapassou as limitações do género não dispensou ainda, pelo menos neste universo de vivos, este corporalma. E é aí que o amor, acaba por ser quase que uma sublevação contra a indústria que o gerou: dois, a par, recriam dentro de um pequeno núcleo a diversidade e a coesão do mundo. É ali, na solidão de um e de outro que recriam o ser em dádiva que foram desde o primeiro momento na terra. Mesmo que não o soubessem. Sairam do mundo, muitas vezes desconheciam-se totalmente e, depois, construiram um pequeno casulo a que chamaram ninho. Ninho do amor. Pode ser feito de ideias, de pequenos filamentos de musgo e terra, lama, pode ser tudo. O amor é o lugar expansível, o universo intenso em extensão. É por isso que poderemos amaldiçoar tudo desde que deixemos de fora desse exercício de erosão e corrosão, os amantes.
Não disse nada como prometi. Tudo o que de mais vibrante podemos dizer sobre o amor é silêncio. Silêncio. E essa intempestiva vontade de o dizer, de o repetir, de o replicar sobre a Terra. Não é só por isso que os amantes são seres admiráveis. O que os torna únicos de todas as espécies de humanos conhecidas é indizível.

3 comentários:

Cristina Gomes da Silva disse...

Ficou bem preenchido este teu silêncio. É preciso vivê-lo de olhos fechados, com farripas de memória das palavras. Boa noite

Mónica (em Campanhã) disse...

de cortar a respiração

CCF disse...

E escrevemos e escrevemos e escrevemos para nos aproximar do mistério e às vezes chegamos tão perto que parece ele se nos revela.
~CC~