segunda-feira, junho 18, 2007

O inominável

Tenho um privilégio: posso pensar-me diante de uma janela aberta sobre um horizonte vasto. Se este ecrân é já de si uma janela, que funciona como um espelho - dada a refracção específica da luz eu vejo-me do outro lado, imagino que como o pianista que vê os seus dados replicados sobre o mogno do piano - eu tenho diante de mim uma outra janela, imensa, a qual vale todos os sacríficios.
Não estou fechado a pensar. Sei que estou aqui, pressinto-me na sombra reflectida, mas os meus olhos estão para além desta mesmificação de mim. E é por isso que tantas vezes desisto de pensar. Muitas vezes a janela está fechada e, com ela, é o meu proprio pensamento que se fecha. Eu não consigo pensar-me, entregar-me ao acto de pensar se não der por mim a abrir uma janela, se não sentir a aragem fresca e até fria, no corpo nu. Porque eu estou sempre nu, ou à procura da nudez, quando penso. O que me comove nalgumas pessoas que partilham comigo esta ideia de blogosfera, é esta ideia de que o pensamento é abrir janelas.
Por exemplo, o amor. O amor como disse o Luís, não existe. A ideia do amor sim, existe. É claro que o Luís é um romântico em negação, foi também ele que um dia escreveu essa frase extraordinária que nunca esquecerei, a paixão é o coma da razão. É um momento de clarividência tão excedentária que até se perde da própria razão que parece venerar. Mas essa é a sua circunstância e eu nem quero, nem consigo pensar no que seriamos de nós sem esta nossa condição circunstancial. O que que eu quero pensar é não na ideia do amor, mas no momento anterior à ideia do amor.
O mundo existiu antes de haver uma ideia do amor? É isso que me perturba.
O resto é história. História das civilizações, história das ideias, história da arte. Deverá ser pensado também. Ou melhor, será isso que deverá em última análise ser pensado. Deveremos em última análise pensarmos na forma como amamos.
Até porque há uma questão que deveria também ocupar-nos: o nosso modo de viver é um dispositivo que tende para o totalitarismo e o totalitarismo não sobrevive senão à custa do apagamento da memória, da história. É por isso que os dispositivos totalitários se apresentam muitas vezes como conservadores, tradicionalistas. Fixam uma história que apresentam exaustivamente criando nos revolucionários um ódio contra a história. Os conservadores usam, abusam e chulam a história mas estão contra ela. A história da humanidade é como a história de um só homem ou de uma só mulher: liberta. O grande feito dos conservadores é fazerem crer que a revolução é uma insurrecção contra a memória, contra a história. Ora este totalitarismo, no caso concreto do amor, é brutal e só pode ser resolvido através da memória. Nem sempre fomos assim. Nem sempre vivemos assim. Só a natureza totalitária do dispositivo que reproduz as nossas vidas poderia fabricar essa ilusão. Mas deixemos por hoje a história, a crítica ao amor. Há um trabalho a fazer antes. E esse trabalho é de natureza ontológico. O que é a génese do amor? Como é que cada um de nós poderia coincidir nisso, numa imagem, num momento? Qual é a imagem que poderiamos adoptar universalmente para explicar o amor às crianças, aos novos, aos adultos, aos gerontes? Essa imagem é a do princípio do mundo. O big-bang. E mais uma vez estamos diante de algo que nunca poderemos dizer que existiu: o big-bang. Não há nenhum ícone moderno, nem mesmo aquele beijo de E tudo o Vento Levou, que explique com tanta humildade e sobranceria o mistério do que é ou pode ser o amor nas nossas vidas. Porque a questão não é saber se o mundo existiu antes da ideia do amor. Claro que não existiu. O amor é aquilo que constitui a vida e nesse sentido o que interessa não é saber se o mundo existiu antes, é reconhecer que é a ideia do amor que nos permite reconhecer a existência do mundo, da vida. O amor é o tremendo acto da constituição da matéria em coisa e da coisa em ser. A cópula, o par, o cerimonial, a luxúria e a pornografia, o erotismo, não passam de representações do amor que coabitamos ou desabitamos conforme nos transportam ou não, neste movimento perpétuo. É a política que transforma a cópula, o par, o cerimonial, a lúxúria, a pornografia, o erotismo como representações dominantes. Não é isso que nos ocupa agora.
A nossa representação do amor, é a projecção externa do que cada organismo vivo em que nos constituimos diz ou vive intensamente: vive, reproduz-te, célula a célula, morre, renasce, cria, destrói. Cada um de nós, mesmo nos momentos mais silenciosos e apáticos da nossa vida tem um big-bang a rebentar dentro de si. Cada um de nós tem dentro de si, a rebentar, uma ideia do amor.
É quase um trabalho impossível, este, o do pensar o amor. Se atribuirmos um valor de linguagem ao falar do nosso corpo antes de chegar à enunciação, à expressão, à própria dicção, é como se pudéssemos reconhecer que existe um discurso do amor que é prévio a todos os outros discursos. Eu, eu mesmo, posso aceder a essa ideia do amor de olhos fechados, de boca fechada. Não preciso da palavra. As minhas células falam por mim. Quando eu começo a falar sobre o amor, e o amor é esse lugar de onde parte toda a vida, é esse movimento de um para outro, seja lugar, corpo, ideia, quando eu começo a falar sobre o amor, tenho que inventar um interlocutor. Tenho que inventar no outro um interlocutor. Ao inventá-lo, mobilizo um conjunto de ideias que suponho, nos são comuns. É aí que começa o problema: as ideias não são puras. Estão manchadas, adulteradas, transformadas pelo comércio e pela guerra. Há aqui um momento de alguma perturbação que não sei como transpôr: se para exteriorizar esta ideia de amor que comanda todo o meu dinamismo interno eu tenho que inventar, criar um interlocutor, e se não o posso inventar sem recorrer a ideias manchadas pelo comércio e pela guerra, eu poderei a breve trecho chegar a um ponto onde me é insuportável falar sobre o amor. Esta ideia é angustiante. Porque não se trata de não falar de uma ou de outra ideia sobre o amor, ou até, de não falarmos com este ou aquele interlocutor. É mais grave do que isso. É mais ferida. É toda a constituição do outro como interlocutor que pode estar em perigo. Porque se não pudermos instituir um outro para lhe falarmos do amor, do amor e não da representação, de uma determinada representação do amor, e se o amor é tudo, do que falaremos então? É a própria constituição do outro como interlocutor que se poderá, a breve trecho, tornar insuportável. É claro que haverá uma frase prévia, principalmente em nós, que trocamos de imaginários desde que aprendemos a trocar cromos: a da loucura. Constituir-nos-emos a nós como interlocutores. Mas a loucura não é insana: um dia acordará e até o outro em que nos constituimos parecerá insuportável. Desistimos primeiro do mundo, depois dos outros, depois de nós. Quando eu digo nós digo a multiplicidade de outros em que um mesmo se constitui. Eu disse isto? Eu disse: "diante da improbabilidade em que o falar de amor se constituirá, tornar-nos-émos insuportáveis ao ponto de desistirmos de nós como os nossos próprios interlocutores?" ? Tudo isto parece a morte vista de outra maneira. Eu, cansado da interpretação do amor, sucumbirei diante da loucura e da solidão mais cruel, aquela que até de nós se despoja. O que virá depois? O suícidio? Mas como se o suícidio é um acto, um agir e enquanto acto de transformação, um acto de amor? O mais grave de tudo isto não é que eu não possa deixar de constituir o outro através de representações do amor que mais tarde ou mais cedo tornarão insuportável a própria ideia de constituição do outro. Esse é um problema existencial e todos os problemas existenciais são políticos.
O mais grave de tudo é que eu pudesse pensar que deixaria de amar por não conseguir falar sobre o amor e que esse desespero me levaria à loucura. É um problema político gerado pelo dispositivo totalitário que regula a nossa vida: ele quer-nos fazer crer que não sobreviveremos à impossibilidade de participarmos na prolixa representação do amor. Só que a politica neste caso, felizmente, cede o passo à ontologia: enquanto o big-bang não se extinguir dentro de nós, o amor também sobreviverá.

7 comentários:

cbs disse...

"enquanto o big-bang não se extinguir dentro de nós, o amor também sobreviverá"

mas há por aí malta, onde o big bang parece já ser um big, big crunch :)

tavas inspirado, Jpn

Anónimo disse...

O inominável é Deus.
O amor não deve ser inominável senão o Amor é Deus.
Não sabia que o "luís" tinha escrito que a paixão é o coma da razão. Concordo em absoluto. E devia ser um coma irreversível, porque se se recuperar a razão e houver memória?
"As moças têm dificuldade em crer" que se sobrevive.

Alba disse...

Este post é para ser lido e relido. Umas vezes de noite, outras de dia. É para ser saboreado. E pensado, também. Porque por aqui desfilam as Eros e Thanato, a linguagem, Deus...
Por agora digo que, como é usual, deixo este cantinho mais rica. E mais alegre.

Anónimo disse...

JPN, olá. Li o teu texto. Gosto das coisas que escreves, algumas são mesmo muito bonitas, de outras não gosto tanto. Deste texto, não gosto muito. Desculpa-me a minha franqueza, mas a meu ver o texto é excelente e é bonito, só que não gosto muito. Eu também, talvez, não sei muito sobre o Amor, só sei que ele se sente... e sei que se sofre muito quando se ama... 1 bj.
Eli

Anónimo disse...

"O amor transcende sempre, é o agente de toda a transcendência no homem. E assim, abre o futuro; não o futuro que é o amanhã que se presume certo, repetição com variações do hoje e réplica do ontem: o futuro, a eternidade, essa abertura sem limite a outro espaço e a outro tempo, a outra vida que nos surge como sendo a vida de verdade. O futuro que atrai também a história.
Mas o amor lança-nos para o futuro obrigando-nos a transcender tudo o que promete".
(...)
Maria Zambrano

cecília r. disse...

não, quando se ama não se sofre. tive um amor de 20 anos e esse foi o primeiro. quando se ama, o amor enche-nos e transborda. sofremos quando pensamos em nós, só em nós. e o amor é uma disposição para o outro, uma abertura. no sentido inverso a abertura é ferida. mas já não amor: narcisismo.

maria joão martins disse...

Um texto muito belo, mas que surpreende porque consegue o mais raro: falar lucidamente do amor, sem deixar de ser romântico.