O mundo é um poema. Deveremos morrer laicamente por ele. Aceita-te. A aceitação não é um poema. É o que te permite continuar no trilho da poesia. A minha mãe reza todos os dias ao acordar e ao deitar. Reza também durante o dia. A sua vida constitui-se cada vez mais como uma longa e ininterrupta oração. Eu não rezo. Digo que o mundo é um poema. Que deveremos morrer de laicicidade. Quer dizer, de aceitação. Digo isso da mesma forma continua e reiterada como a minha mãe se constitui oração. Hoje, quando adormecer, não vou praguejar contra a solidão. A solidão não existe. A solidão é uma invenção minha para poder continuar a escrever posts e sentir-me cada vez menos só. Hoje ao almoço, de amigos de há trinta anos, falámos do meu último amor platónico, estávamos nos Olivais. Alguém referiu que deveria estar só. Não sei, não se lhe conhece blogues nem posts. Respondi a sério, que não tenho nenhumas saudades dos meus amores platónicos. Os meus amores platónicos são todos eles imortais. E não têm precedência. Não há nenhum amor melhor que o outro. A rapariga de odivelas da praia de carcavelos tem o mesmo valor da malvina que a inspirou, e amo esta com o mesmo ardor que me consumiu diante de jeanne moreau, ou da mimi, ou da ana, a rapariga de quem falávamos e nenhum destes amores sobrevive à ideia de que tiveram como única e exclusiva missão levarem-me pela mão da adolescência ao fim da juventude. Conheci muita literatura com eles. Mas nenhum me ensinou a textura, a cor, o cheiro, a voz de um corpo feminino. No entanto, porque falar das coisas é reacendê-las em nós, senti por momentos a vontade de ter tido um amor que levasse pela mão, desde a aventura da juventude, até hoje. Hoje, quando me deitar e me entregar ao meu sonho laico, fecharei os olhos do meu amor de há vinte e sete anos e imaginarei que será a proximidade com o seu calor que me envolve. Que sempre estivemos juntos. Dir-lhe-ei boa noite, perguntar-lhe-ei pelos nossos filhos e esperarei que ela adormeça. Só depois fecharei os meus olhos. É uma promessa antiga, velar-lhe assim o sono. E de manhã, antes de despertar, acorda-la-ei com a força dos meus olhos. E ela vai agradecer-me não ter dormida para a velar. Um amor de vinte e sete anos tem de ter esta dor, esta cumplicidade.
5 comentários:
dança-a até ao fim
Compreendo bem essa fantasia terna. Seria belo, nem que fosse por uma noite, fazermos esse exercício contra-factual e demonstrarmos ao mais querido dos nossos amores platónicos (para mim existe um maior amor, nesta categoria, já que sentido mais intensamente) como tem sido vital para a nossa alegria ao longo dos anos.
Um amor de 27 anos tem de ter toda a dor.
Tudo o que não é e ficou por ser, tudo o que sendo morreu quando ainda era, todo(s) esse amor(es) se eternizam em nós em beleza e intensidade. Os outros, os que precisam que como arbustos os reguemos para que nascam flores em cada Primavera, esses são os realmente dificeís. Diria aliás que os de duram 27 anos de vida vivida são impossíveis, não fora outros dizerem que são possíveis e verdadeiros e assim me parecem mais belos, ainda mais belos que os primeiros. Mas todos os amores são belos.
~CC~
"Centro também o coração porque só ele no nosso ser produz um som. Outros centros há-de haver, mas não soam. E somente por ele os privilegiados organismos que o possuem se ouvem a si próprios, imaginamos que, num grau ou noutro, todos os viventes hão-de tê-lo, como privilégio e aflição que mostra a bipolaridade que abre e aflige o ser vivente.
Embora o homem não preste atenção ao incessante soar do seu coração, é por ele sustentado no alto, a um certo nível. Bastar-lhe.ia ficar sem este pulsar sonoro para murgulhar numa escuridão, para sentir-se mais estranho , mais sem albergue, como privado de uma certa dimensão, ou de uma chamada que por si mesma cria a possibilidade da sua existência."
Maria Zambrano in, Clareiras do Bosque
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