sábado, agosto 04, 2007

Trabalhos da dor de corno

Deveremos tratar amorosamente o desamor, o desmame de um afecto. Cuidadosamente, como se fosse um vestido de cebola. O luto, o tirar e pôr a pele de lagarto, o retratarmo-nos, o sermos longe, distância, ontem o Pedro perguntava-me se as coisas que estavam muito longe eram muito pequeninas, viemos a filosofar pelo comboio, não, não são pequenas, apenas estão longe e a distância faz isso ao tamanho das coisas, das pessoas, torna-as pequenas, pontos na paisagem, lembro-me que sempre que uma antiga namorada me contava, ou eu vinha a saber, que ela tinha reconstituído a sua vida, o seu afecto, passava por mim uma suave sensação de desconforto, uma angústia, um simulacro de dor. E nada mudava com as circunstâncias. Não interessava nada se era eu ou ela que tinha terminado a relação. Não há protagonistas na dor de corno, no luto de um afecto. Lembro-me dos meus brinquedos que tinha deixado de usar, de lhes dar vida. Se íam parar á mão de um irmão logo eu descobria que ainda eram meus, que ainda queria fazer imensas coisas com eles, reinventá-los em mim. Não que as pessoas sejam construções de lego, ursos de peluche, carros de polícia, actions men's. Só que o facto de as amarmos como antes amámos as coisas, os brinquedos, desmonta-nos a nós em peças de amar, de odiar, de enciumar, de alindar. Não me importo com a minha dor de corno. Até lhe acho graça, penso, enquanto distraidamente coloco a sopa passada dentro dos copos de sumo. É preciso amarmos o desamor, laboriosamente descascar a cebola, rirmo-nos de nós mesmos. A poesia e a luz que irrompe das pequenas maquinetas que somos,assim nos pede.