Anteontem ao fazer os caixotes da mudança, deixei que os livros esvoaçassem da prateleira para os caixotes sem algum critério. Quem sou eu para decidir sobre as leituras que um outro, mesmo que eu, um dia tomou? Eis-me assim: sem critério, sem norte, sem posse. Lembro-me de alguém que em tempos existiu, era o sentido da frase-chave de Kaspar. O que é que é o passado? Que memórias? É engraçado que o que nos perturba é muitas vezes a nossa cura: dizemos a falta de memória e muitas vezes não é menos memória. É vivermos projectados para os dias e os dias projectam-se sempre num presente próximo. Perturba-nos tanto a nossa cura que um dia nos deixamos salvar pela nossa doença: o deixarmo-nos atolados no que vivemos, no rememoriar dos gestos, dos lugares, do que se disse. Ontem, estava sentado na marquesa da massagem, vieram-me os lugares onde há muito não vou. A minha infância. O verde. A frescura de um regato primaveril. Os risos no quintal. As brincadeiras entre irmãos. As pequenas hortas onde nos treinávamos neste esperar sempre um pouco mais da terra. Este passado assim tão composto e encaixotado, por anos, sensações, cheiros, atrevimentos, fez-me sentir um pouco mais seguro da bem aventurança que é viver sem espera nem desespero.
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