quinta-feira, janeiro 17, 2008

Ele descia a rua. Cruzaram-na na esquina, ao pé do quiosque dos jornais. Há muito tempo que Roberto não o encontrava.
- Soube que te tinhas divorciado.- disse-lhe.
O outro encolheu os ombros.
- Já estávamos separados de facto.
Tinha-os conhecido na Faculdade. Luís andava em Arquitectura mas quase todas as tardes marcava presença ao lado de Margarida, na esplanada da Universidade Nova. Ela estudava história e dava aulas no ensino público. Ao fim de vinte anos de casamento apaixonara-se por um miúdo, um aluno. Luís, o seu companheiro, foi o seu primeiro confidente e cúmplice enquanto ela, durante dois longos anos, esperara pacientemente por ele, até que ele atingisse a maioridade.
- Admiro muito o que fizeste. - disse-lhe Roberto, passando-lhe a mão pelo ombro.
O que Roberto lhe queria dizer mas não teve coragem era, és um banana, um picha mole. Mas só lhe saiu aquele cumprimento meio fúnebre.
- A sério?
- Sim, claro.
- Eu não. Eu admiro-a a ela. Eu apenas fiz o que um qualquer banana, um vulgar picha mole teria feito.
Roberto engasgou-se, tossiu. De repente lembrava-se de que Luís sempre fora uma pessoa muito singular, diziam que lia os pensamentos dos outros. Sentiu-se nú, como se radiografado ali no meio da rua. A sua vontade era desaparecer mas por um estranho impulso que nos leva por vezes a fazer exactamente o contrário do que queremos fazer, pegou-lhe pelo braço e levou-o para dentro do café. Sentaram-se. Havia barulho de pessoas a entrar e a sair. Roberto começou a sentir-se deprimido.
- E a Margarida agora?
- Agora o quê?
Maldizeu-se. Ainda há pouco se sentia tão feliz, tão contente consigo, com a vida que levava. Tinha começado até a trautear aquela música dos Pink Floyd que o acompanhava desde a adolescência. E agora isto, esta vontade de desaparecer, de transpor este obstáculo constituído pela massa bruta do corpo de Luís que se entre punha entre ele e a porta. É por isso que não o apanhavam nos jantares anuais de turma.
- E a Clarinha ficou contigo?
Era uma bóia de salvação, os filhos, o tema. Lembrava-se que Margarida casara já grávida, Clarinha, que ele só tinha visto uma vez, devia agora ter vinte anos. Luís desatou a rir, descontroladamente:
- Não, ficou com ela.
Ainda pensou em perguntar-lhe qual era a piada mas isso ia fechar ainda mais esta difícil conversa. Luís pressentiu-o:
- O puto depois de andar a comer a Guida apaixonou-se pela Clarinha.
Roberto sorriu pela primeira vez desde que se tinham encontrado.
- Os putos são tramados!
Luís contou, agora mais entusiasmado, todos os pormenores. Bruno e Clarinha estavam juntos há mais de seis meses e esperavam um bebé. Margarida estava empenhadíssima no seu papel de avó e estava-os a ajudar a mobilar a casa, a planearem a vida. Não voltara ao ensino público entretanto. Pedira dispensa sem vencimento e dava algumas explicações de história e de ciências sociais, enquanto trabalhava em par-time numa florista.
- Costumam falar?
- De vez em quando almoçamos juntos. Ela traz-me uma flor e eu pago-lhe o almoço.
- Não a odeias?
Há aqui um pormenor importante. Luís sempre tivera o condão de o fazer sentir bronco. As palavras nunca eram certas, havia sempre qualquer coisa fora do lugar quando falava. Era por isso, e não por alguma especial amizade, que se arrastavam as conversas entre os dois. Roberto só conseguia acabar o encontro quando tinha dito duas ou três coisas seguidas sem se sentir corar de humilhação. E mesmo assim, enquanto desfazia o cumprimento e se soltava de Roberto ainda fazia sempre uma careta de alívio.
- A única coisa que odeio é a vida que levava, Roberto.

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