quarta-feira, janeiro 16, 2008

Rosa

- Tudo é possível.
- O quê?
- Tudo é possível.
Não fez nada. Deixou-se estar, o tempo que foi preciso.
- Eu sei que tudo é possível mas queria ouvi-lo da tua boca.
- Nunca te darei esse prazer.
- Tu odeias-me, não odeias?
Não o odiava. Perdera o cheiro do ódio não sabia onde. Há muitos anos. Desprezava-o. Ele já não contava. O problema do desprezo é que ao mesmo tempo que apagamos os outros, deixamos também nós de existir. Ela não estava na mó de cima. Nunca estivera. Mal ele tinha acabado de jurar-lhe fidelidade eterna, ela olhara o padre, uma vozinha interior tinha-lhe dito, estes filhos da puta protejem-se todos uns aos outros, que ela percebeu que com ele nunca estaria na mó de cima, era uma ilusão, tudo a fingir. Tal como a marcha nupcial, os laçarotes de cetim rosa, o ramo de flores, os bagos de arroz. Perdera o respeito por si própria, pelo mundo onde vivia. As ruelas.
- Não, infelizmente não te odeio.
- Amanhã mato-me.
- Não estou ansiosa, Carlos.
- Não?
- Não.
- Ía jurar que querias que eu morresse.
Ela a dizer-lhe coisas para passar o tempo. Talvez ele amanhã, finalmente, se matasse.
- E quero. Mas não estou ansiosa, Carlos. É pecado esperar ou desejar a morte de alguém.
- És capaz de falar de pecado?!
Quando as coisas deixam de ter importância. Onde é que vamos buscar as forças?
- Não grites. Só aqui estou eu. E não é por falares mais alto que te vou dar atenção.
- Tu ensurdeceste.
- Não, apenas deixei de te ouvir.
- Estás a querer provocar-me?
Era só um poucochinho de ódio. A torneira pingava apenas. Como a vida que ela levava.
- Não vale a pena.
- Não vale a pena?
Ele tinha-se tornado um bocado de eco. Rosa olhou-o finalmente com premeditação e um pouco nada de rancor, azedume.
- Amanhã se houver sol na minha vida tu matas-te e depois, vou odiar-te agora ainda? Para quê?

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