terça-feira, março 25, 2008

O que é a dor, quando deixa de doer?

Deambulo pelas ruas da Graça a ver se sou eu nos meus passos. Está frio,
frio tremendo,
dou voltas ao quarteirão, ando calmamente, vou devagar,
aperceber-me-ei uns passos mais à frente da candura, da leveza e até,
da doçura com que caminho,
leva-me a tristeza, uma tristeza sem fim,
vou continuar,
neste desapego, nesta estranheza, neste desafecto,
as coisas passam por mim, os próprios prédios, serão casas estas

construções assim tão desoladas de existir?!,

de lá de dentro vem uma voz de loucutor de televisão,

este real que não o é,

é a fingir,

vou continuar,
quando quiser parar entro num táxi,
digo,
- Para a Patagónia, por favor!
há muitas maneiras de pensar nesta dor,
nesta ferida que tarda em ir,
eu digo que é a Primavera a fazer campo na minha dor,
no meu luto,
eu sei que é a Primavera a chegar,
sinto-lhe o cheiro do renovo,
faltam-me os vocábulos rústicos, falta-me a terra,
penso em perder os sentidos,
numa apoplexia do real,
perderei primeiro o sentido,

só depois, se for necessário este sacríficio do tangível,

os sentidos,

o cheiro, o olfacto, o paladar, o gosto a hortelã, o
toque suave da tua pele,
a visão, a vista, o horizonte, a audição,
a escuta do sensível,
enlouqueço devagar,
com candura, perco docemente a razão,
elevo morosamente a minha aflição,
eu sei que é a Primavera a chegar. Digo-o ao pé do meu amor,
digo-o enquanto agarro as suas mãos mais leves que a brisa,
são as minhas mãos,
as minhas mãos contentes e digo,
eu sei, é a Primavera que chega, o seu anúncio,
a manifestação da sua força,
entro em casa,
é este tempo em flor que devo aos meus vivos,
devo-lhes uma primavera inusitada,
num crescendo de raiva,
a espuma, o incenso, a flor,
vou cumpri-la devagar, candida, doce e deslumbradamente
como uma promessa, um rasto de vida,
coisas de vivos.

6 comentários:

Doramar disse...

Pende das tuas palavras, a doçura, a serenidade.

CCF disse...

É a memória da dor. É uma mágoa leve que já não perturba mas ainda incomoda. É o que ainda nos toca quando já deixou de nos sacudir.
~CC~

mafalda disse...

talvez essa dor é o que ainda nos mantém vivos...pelo menos a mim...

Elsa Serra disse...

Gosto muito de te ler...tenho saudades de me cruzar contigo na rua...bjs

JPN disse...

e eu e o Pedro temos saudades de te ouvir contar histórias no Pequeno Herói...e do Pequeno Herói, claro...

JPN disse...

abraço, Mafalda!