quarta-feira, março 19, 2008

A minha mãe

Foi por acaso que fosse hoje que me decidisse a escrever sobre a minha mãe, o pai que me resta. Ontem fui jantar com ela. Telefonei-lhe à tarde, disse-lhe, vamos aí hoje jantar contigo. O pretexto era uma viagem, que ela ía fazer. Ando sempre de candeias trocadas com ela. A minha mãe irrita-me. Quando ela fala lembro-me sempre da imagem daquela personagem de Woody Allen que fazia de sua mãe, elevando-se nos céus de Manhattan. É uma dor minha, pessoal, pessoalíssima. Que quase nunca me deixa abrir a porta para a imensa ternura e admiração que tenho por ela. Lembro-me de tudo. De como ela era bonita na juventude. E divertida. Gaiata, a soletrar as histórias da casa grande de Elvas. A professora, a senhora professora da minha infância, a amiga preferida dos seus alunos com quem estabelecia sempre laços de amizade que nos envolviam a nós também. A professora que lia Piaget, Carl Rogers. Que era uma entusiasta da rubrica, Visitas de Estudo, onde cantarolava e ria com os seus alunos. Até perceber que o orgulho - e o retirar da dízima disso, como o andar de colo em colo das suas alunas - era mais cómodo e mais proveitoso, cheguei a ter ciúme dos seus alunos. Freud e todos os que se lhe seguiram explicarão certamente com eloquência farta este fenómeno de um filho desavindo com o afecto à sua mãe. Eu, que com ele convivo diariamente, só sei a angústia de ter há muito chegado à consciência de que quanto menos a amo, menos gente sou. Ontem fomos jantar com ela. Dois irmãos meus repentinamente do lado de lá do Atlântico fizeram-me pensar que lhe deveria alguma companhia. Eu sou assim, um falso samaritano. Só consigo fazer-me bem a mim próprio pensando que estou a salvar o mundo. E enquanto mostrava o albúm de fotografias que o meu pai tinha feito com a viagem que os dois fizeram em 77, e que retomava a que ele tinha feito em 57, quando fora estudar para a Suiça, percebo o quanto sou parecido fisicamente com a minha mãe. Ela, que doravante chamarei de meu amor, olhou para a minha mãe, olhou para mim, e sorriu diante da evidência. E depois, apaziguado, passámos a noite a ouvir as histórias dos seus pobres, dos seus necessitados. Ou a vê-la ligar para as suas irmãs, de uma confraria qualquer. Os seus santos são como os seus chocolates e os seus chocolates são como os seus irmãos. Estão por todo o lado. Há uma corrente solidária que une a velhice à solidão dos outros. Seja na cama de um enfermo, numa família carenciada ou num sem-abrigo. Ou naquela casa sem janelas onde ninguém vai. Quando me despeço levo num frasco um bocado da enxertia de uma raíz que é a minha própria história. Digo-lhe, voltaremos todas as semanas. Deixo-a com a vida de Assis, na televisão. De manhã, tenho um sms, lá por volta da meia noite e vinte, a dizer-me o quanto apreciou a nossa companhia. Não tenho por hábito, sou terno aqui entre palavras mas seco entre vivos, respondo-lhe, digo-lhe o quanto a amo e que faremos disto um fenómeno regular. Diz-me que sim, na resposta. Mando-lhe uma animação, um bonequinho a saltar de contente com um pequeno coração a salientar-se. Descubro que a tecnologia não tem idade e pode tratar coisas a que antes confiara um muro de pedra e de silêncio.

1 comentário:

Mónica (em Campanhã) disse...

coincidências ainda, nestes afectos que tropeçam de ternura