Descia o Chiado. Eles, os três da ponte das três entradas, subiam.
Chamaram-me. Eu ía no meu mundo, ou no fora dele que tem sido o meu mundo ultimamente. Aceitei lentamente aquele chamamento da realidade do outro lado do passeio. Um prazer imenso por os encontrar fez-me desafiá-los para uma bebida no largo do carmo. Um delicioso pedaço de noite. No fim, creio que foi o Jota, que lançou a pergunta:
- Então e o Obama?
Dei por mim a responder de um modo tão estranho que andei ainda um pedaço da noite, já depois de nos termos separado, a pensar no assunto. Disse-lhe:
- Pode parecer absurdo mas eu agora dou-me a investir numa coisa muito esquisita: a não compreensão. - Tanto eles como eu próprio ficámos sem saber o que eu queria dizer. Lá me socorri de uma metáfora teatral. - No teatro o momento mais interessante é quando estamos a experimentar e de repente o actor não sabe como há-de fazer. Há ali uma descontinuidade, um vazio, que é necessário preencher. Tal como na vida real. Na vida real acontece-nos muito isso. Não somos muito mais do que portadores de discursos. Transportamos discursos de um lado para o outro, apagando a marca original. Às vezes parece que rompemos com isso, dizemos: como costuma dizer fulano, ou beltrano, ou sicrano. Mas é retórica doce. Nós sabemos que sicrano, beltrano ou fulano papagueiam, sem saber, o que o mundo lhes contou. E portanto transportamos discursos. Entre o encaixe dos discursos, por vezes há espaços em branco. As brancas dos pequenos mortais que somos são terríveis. Ficamos ali sem saber o que dizer, o que fazer, o que sentir. Na maior parte das vezes preenchemos esses pequenos espaços vazios com mais clichés, com mais coisas sem sentido, a que alguns, com traços de actor genial, emprestam uma grande emotividade, conseguindo dar-nos os maiores lugares comuns como se eles estivessem vindo das entranhas. No teatro também isso acontece. No teatro, no mau teatro, isso também acontece. O actor está num espaço negro, não sabe o que vai fazer e de repente solta as suas respostas pré-programadas. Só que o teatro, tal como a vida, e por isso a magia do teatro, tal como a da vida, pode ser outra coisa. No espaço laboratorial que o teatro consegue ser, o actor pode fincar os pés no chão e esperar antes de responder. Pode engolir o silêncio. Ok, não sei o que dizer, o que fazer e por isso não vou dizer, nem fazer, nem nada. E ficamos ali a enfrentar esse buraco negro que é não sabermos o que é que havemos de dizer, de pensar, de sentir. É claro que então milhares de acções, de palavras, irrompem, com força original, nos olhos, nas mãos, na presença do actor. Amo tanto esse teatro que comecei a ambicionar uma vida feita à sua semelhança.
É um jogo arriscado. Numa altura onde o que se vende no grande mercado ideológico do mundo é a ideia de que necessitamos de ser mais rápidos a compreender para podermos mais rapidamente compreender o que é que vamos pensar sobre Obama, sobre a Maddie, sobre a crise do petróleo, sobre a Quinta da Fonte, e o tudo mais em que se constitui a agenda diária do cidadão português de hoje, é arriscado inverter o jogo e investir na não compreensão. Mas é a nossa única saída, parece-me. A compreensão da realidade está hoje não só subordinada a uma agenda comum como a uma retórica assente na dialéctica, quando não no antagonismo serôdio ou maniqueísta. Está velha, cansada e quase nada tem para nos dizer sobre o mundo onde vivemos. Precisamos de descompreender. De aceitar o vazio. Da linguagem.
1 comentário:
só tu para nos desexplicares isso
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