Um acontecimento é uma coisa estranha. Nem sabemos se é uma coisa. É um encontro de coisas, de matérias, de matérias diferenciadas tanto no tipo de existência, material ou imaterial. Quando uma sucessão de acontecimentos se organiza como uma mesma identidade, agrupamo-los e a essa agrupamento chamamos vida que se torna assim numa sucessão de coisas estranhas. Dizemos que algo acontece quando esse acontecimento, que não sabemos o que é, se realiza num espaço e num tempo. Se realiza ou não. Se esperamos uma tempestade e se ela não se realiza dizemos que não houve tempestade. Ou se um desastre nos aparece como inevitável e ele não ocorre, dizemos que se evitou o desastre. Por isso é muito claro que o desastre e a tempestade aconteceram primeiro para depois terem desacontecido. Nunca saberemos por isso definir muito bem o que é um acontecimento. É algo que desafia a nossa compreensão. Mas a nossa compreensão é muito limitada. Por exemplo, nós fomos educados a entender que há uma realidade interior e um realidade exterior. Para haver uma realidade exterior e uma realidade interior tal como a nossa ideologia a fornece a unidade mínima de significação é o corpo, a pessoa, a sua identidade. A sua individualidade. A sua vida. Que não é mais do que uma sucessão de coisas estranhas. Por ser uma sucessão de coisas estranhas foi criado, nas sociedades humanas, um dispositivo ideológico que, utilizando os princípios tecnológicos das etars, consegue fazer destilar da vida a sua estranheza, mandando-a para áreas como as artes e a ciência onde ela, a estranheza, sendo a sua condição natural, não perturba. Isso permite-nos viver a maior parte dos nossos dias sem grandes perturbações metafísicas. Aliás, isso permite-nos viver a maior parte dos nossos dias. A metafísica no mundo ordinário é uma doença do espírito e afecta a vida regular, podendo até inibir a autonomia do sujeito, a sua liberdade. Excepto nalguns dias por ano. Como as férias. Aí podemos desaparecer, desintegrar-nos num pensamento e voltar de novo à superfície, à espuma. Foi por isso que hoje, ao tomar banho depois de vir da praia, e ao colocar um pouco de esfoliante para remover as células mortas, fiquei ali imerso em metafísica, a pensar nas minhas mais pequenas células, em quem seriam, em quanta generosidade tiveram de me trazer até aqui, de morrerrem por mim. Estava quase a desfazer-me em água, e a pensar, vou na correnteza, quando um chamamento, vindo do lado de fora, me trouxe de novo à realidade, à fisica, à ideologia.
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