O silêncio é uma convenção em desuso neste nosso mundo. Caiu a noite aqui, vai já o começo da madrugada. Vou ao quintal estender uns calções de banho e uma toalha que se atrasaram a chegar à corda da roupa. A mola cai ao chão, na laje, e o barulho ecoa nas redondezas. O cão em frente ladra. Ladra também, por simpatia, o cão da casa ao lado. Mais um outro lá ao fundo. Ouço vozes, acendem-se luzes. A vizinha do andar de baixo, cuja porta dista uns três metros do nosso lado do quintal, acende a luz, abre o postigo e corre o cortinado. Olha para mim, vê-me meio envergonhado pelo distúrbio que causei. E depois, apercebo-me do que isto é: o tempo que já vivi num outro mundo que já morreu. Onde o mundo parava entre as onze e as sete da manhã. Em que a televisão se calava depois do anúncio do fim de emissão. Em que tudo parava, excepto o non stop daquela vida muito própria da noite, os bolos da Praça do Chile, as sessões do Quarteto, os autocarros do arco-do-cego, o cacau da ribeira e o mercado. A vizinha de baixo ainda vive nesse mundo. Estamos a uns três metros de distância mas já não estamos no mesmo século.
2 comentários:
por aqui, pela serra, ainda temos muito disso. dá para ouvir o bater do coração, o roçar das pestanas no travesseiro. é tanto o silêncio nocturno que, pela primavera, apetece rogar pragas à passarada, lá pelas cinco e meia da manhã, quando desatam todos a cantar ao mesmo tempo e interrompem precocemente o sono dos justos, eheh...
:)
"dá para ouvir o bater do coração"...que bom um lugar assim!
:)
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