1. No Hoje há conquilhas, Tomás Vasques tenta fazer um paralelo entre as manifestações de 1975 em que o PCP e os movimentos de trabalhadores que lhe eram afectos tentaram impôr o conceito de unicidade sindical e as manifestações de rua de professores e alunos, dizendo que entre o "ontem o o hoje podem não haver muitas diferenças". Centra-se nas recentes declarações de Manuel Alegre de que "não se pode tapar os ouvidos aos protestos", contrapondo-as à atitude de Salgado Zenha (que curiosamente acabou a sua vida política activa como candidato presidencial apoiado pelo PCP e pelo PRD), que afrontou os movimentos de massa do PCP defendendo a ideia de unidade sindical e de um sindicalismo livre da correia de transmissão dos comunistas portugueses. Tomás Vasques faz uma pequena (mas decisiva para a sua argumentação) truncagem: o comunicado do PCP que cita, refere que o movimento de massas criado faz " da consagração da unicidade sindical a expressão de uma vontade do povo democraticamente manifestada", para depois referir que Salgado Zenha não se atemorizou, enfrentou a rua e se opôs "à vontade do povo democraticamente manifestada". Dando assim a entender de que o aviso de Manuel Alegre poderá ser de alguma forma comparado às posições do PCP em 75 e de que, ontem como hoje, ceder à rua seria fatal para a nossa democracia . Em primeiro lugar, Salgado Zenha, e foi essa a subtil truncagem, não se opôs à vontade do povo democraticamente manifestada, mas sim ao entendimento limitado que os comunistas portugueses tinham sobre o que era a manifestação democrática da vontade do povo. Convenhamos: a comparação é tão grosseira como seria se eu dissesse que, por Marcelo Caetano ter chamado Spínola para que o poder não caísse na rua, Tomáz Vasques e todos os que querem reduzir o que se passa na educação a uma manipulação do PCP têm tiques marcelistas. Merecemos mais uns dos outros, creio.
2. O que se passa hoje na educação pública, e já tentei aqui abordar o tema, é extraordinariamente grave, já que a situação da educação pública - e é preciso repeti-lo, o que estamos a discutir é a educação pública, são as políticas públicas para a educação- afecta de uma forma considerável a coesão da sociedade e implica por isso de uma forma global, integrada, o tecido social. Só por isso o que Maria de Lurdes está a conseguir provocar, e não é só a união de vários discursos pela negativa - para além da unanimidade sobre a necessidade de Maria de Lurdes Rodrigues abandonar a pasta da educação o mais que se pode fazer convergir todos os que se concentram contra ela é um discurso negativo sobre o estado a que isto chegou - é também, como já alertou António Costa, um eleitorado socialista em estado de ruptura afectiva, deve ser para todos motivo de grande preocupação.
3. Aceitemos em primeiro lugar que a escola pública - sem nos determos em delongas sobre o que é ou para que serve, que no entanto deveria ser objecto de profunda reflexão - não foge ao paradoxismo que nos envolve dialéticamente: por um lado ela tem de ser um lugar de autoridade, autoridade de ensinar, de transmitir conhecimentos, autoridade para promover as melhores condições de transmissão dos conhecimentos, por outro lado ela é um lugar que só se viabiliza e valida na incorporação e aceitação do educando dos conhecimentos que lhe são transmitidos. Há outros dinamismos que complexificam tudo isto, basta referir que o aluno não está isolado socialmente, está integrado numa família que pode ou não reconhecer-lhe esse direito a autodeterminar-se que está implícito numa proposta de educação para a excelência, mas reconheçamos apenas estes dois. Repita-se: por um lado a necessidade de construir um lugar autorizado e com autoridade para transmitir um conjunto de valores e conhecimentos de natureza cívica, cultural, científica ou profissional que se consideram indispensáveis e por outro lado um espaço cuja validação e viabilização útil reside na capacidade de promover a integração harmoniosa no aluno desses mesmos valores e conhecimentos. Penso que todos concordaremos que uma escola que transmite conhecimentos e valores que se consideram ajustados mas que não são capazes de se assimilar na cultura cívica, científica e profissional dos educandos quando terminam o seu processo de aprendizagem tutelado é um projecto pedagógico inviável.
4. Ora se neste quadro é indispensável que a escola pública tenha alguma capacidade de coesão, maior necessidade há de que essa coesão se verifique no lugar onde a escola tem e deve ser um lugar autorizado e com autoridade para ensinar: corpo docente, corpo administrativo, corpo técnico-científico e pedagógico e corpo político. Todos sabemos que estamos a falar a todos os níveis de uma coesão relativa. Só em regimes autoritários seria possível obter uma coesão na escola pública sem fissuras. Mas para além de todas as outras iniciativas de natureza política e de regulação, a obtenção dessa coesão deve ser uma estratégia política imprescíndivel. Não adianta falar, sobre o peso de cairmos em hipocrisia, do que se está a passar na rua e invocarmos os tempos de 75: basta lembrar-nos de que Maria de Lurdes Rodrigues tentou passar a ideia de que tinha os professores contra ela mas a população a seu favor. Foi ela que fez da legitimação das suas iniciativas políticas uma questão popular. E que abriu caminho à instrumentalização política dos sindicatos dos professores.
5. Maria de Lurdes Rodrigues, pese toda a sua competência técnica e brilhantismo pessoal, ainda não percebeu que não pode mudar a educação por decreto, nem contra a classe profissional em quem a escola pública delega a tarefa de transmitir valores e conhecimentos e muito menos desacreditando-a. Já nem falo da desmotivação e do desalento. A menos que Maria de Lurdes Rodrigues queira uma escola pública sem professores ou que não queira mesmo uma escola pública. E para quem quer impôr modelos de avaliação, cada vez mais apertados para o lado dos professores, cada vez mais lassos para o lado dos alunos, mostra uma grande resistência em ser avaliada e em retirar o juízo político decorrente dessa avaliação.
6. Havia várias maneiras de tentar enfrentar a questão mas a resposta governamental está a radicalizar a questão e a fazer que só duas surjam como possíveis: ou reconhecer que Maria de Lurdes Rodrigues falhou no seu objectivo de garantir a coesão da escola pública ou tentar jogos de retórica política sobre a manipulação que os sindicatos afectos ao PCP e o próprio PCP estão a fazer. E então, quando tiverem de reconhecer que o eleitorado socialista está em ruptura afectiva com o PS, também vão dizer que ele se deixou manipular pelos acordes maviosos dos comunistas portugueses?
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