Avançar. Há frases programáticas. Ir em frente, avançar, de olhos postos no futuro, para a frente é que é o caminho. Ele sentou-se na cadeira do terapeuta e passou pela ideia a quantidade de vezes que se tinha deixado metamorfosear pelo tom programático dessas frases. E ali estava ele, no sétimo andar de um prédio das avenidas novas a desembolsar cerca de sessenta euros por uma hora de flash-back.
- Hoje gostava de ir ao momento em que entrei para a escola primária.
A terapeuta sorriu, deixou-o falar. Dos bibes, da primeira maleta de cabedal, da caixa de madeira onde guardava a esferográfica bic, o lápis vermelho, a borracha cm cheiro a pastilha e o afia lápis. Gostava de rodopiar o afia lápis com precisão de modo a que as aparas de madeira ao sairem formassem um rolo contínuo. Cheiravam a madeira e isso era bom. Lembrava-se também da primeira merenda. Um copo de plástico typerware com leite achocolatado e cinco bolachas torradas forradas generosamente a manteiga.
- Foi assim que eu me esqueci que não queria ir à escola,
disse ele ao fim de dez minutos. Ainda tinha mais cinquenta minutos e já começava a achar que tinha sido má ideia escolher aquele tema:
- Se calhar esse dia agora passa num instante. Podemos ir mais longe?
Era a frase que a terapeuta mais gostava de ouvir. Ela seguia uma abordagem não directiva e muitas vezes perdia-se no tempo mas quando o paciente se apoderava do percurso terapêutico ela tinha uma pequena epifania e durante uma valente meia hora tudo lhe voltava a fazer sentido no seu trabalho.
- É que as outras coisas de que me ainda me lembro já não sei se sou eu que as lembro ou se as inventei. Por exemplo, durante todo o primeiro ano eu tive uma paixão formidável pela professora Yolanda mas não sei quando começou só que agora, ao lembrar-me, começo sempre no primeiro dia de aulas.
A professora Yolanda tinha sido a sua primeira platonia. Lembrava-se de pouca coisa dela. Não conseguia imaginar a sua cara embora lhe tivesse o tom. Uma espécie de Natalie Wood em tons de cinza, um sorriso terno. Lembrava-se de como um dia que fora à catequese, quando voltara já não tinha a sua mala numa carteira da fila do meio, a dos assim-assim. Ficou desesperado,
- A mala, para lá da caixa de madeira, tinha toda a minha vida, especialmente um monte de cromos que vinham em rebuçados de meio tostão. Fiquei triste durante uns breves momentos, até que vejo o Jorge, o meu melhor amigo, a acenar-me da fila da frente, da dos cavalos.
A professora, o que mais acentuava a ternura do seu olhar, tinha aproveitado a sua ausência para corresponder a um dos seus maiores desejos: partilhar a secretária com o seu melhor amigo que estava na fila da frente, dos melhores alunos, os cavalos, alazões aferroados a um futuro que há-de vir,
- Encontrei-o no outro dia no cemitério. Foi a irmã dele que me telefonou. Atirou-se de uma falésia. O corpo ficou feito em papa.
Mas ninguém podia prever. São coisas que a vida toma por suas. Faltava muito tempo naquela altura para se poder saber o que é que nos íria acontecer. Não me lembro de mais nada da Professora Yolanda. Lembro-me de no fim das aulas, já estava em férias, a minha mãe ter comprado um pequeno prato de louça para eu lhe oferecer. Era um prato de louça azul com um pequeno tripé para o suportar, daqueles que hoje abundam nas lojas de trezentos. Naquele tempo ofereciam-se às professoras. A minha mãe, que também era professora, recebia-os dos seus alunos e depois reencaminhava alguns para as professoras dos seus filhos.
- Era daquelas coisas que toda a gente fazia, a que ninguém dava valor quando se faziam, mas a que se davam muito reparo quando não se faziam. Eram outros tempos, ou se calhar não. Eu lá fui todo contente entregar a prenda à professora Yolanda. Quando lá cheguei estava um aparato terrível, polícia, ele tinha-lhe batido, tinha partido coisas, já não me lembro...
Só recordava ainda da face dorida de onde pendia uma lágrima. E do ar contrafeito com que ela recebera o prato e lhe dissera que não precisava de mais nada, a ele, o seu platónico e fervoroso amante.
- Foi a minha primeira paixão. É estranho não é?
A pergunta era um truque. Tinha olhado para o relógio de parede, eram seis horas em ponto, ele sabia que a terapeuta iria esboçar apenas um sorriso maiêutico, que ele se iria levantar, apertar a mão, ela acompanhá-lo-ía à porta, assistiria ainda ao momento em que ele entregava três notas de vinte à sua secretária, daqui a quinze dias voltaria, para uma nova viagem, um novo flash back. Agora voltava à cidade, às suas frases-programa. Avançar. Ir em frente. De olhos postos no futuro.
1 comentário:
o cheiro dos lápis afiados... :)
gostei muito do texto.
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