E das nossas convicções e crenças. Desisto da compreensão geral dos fenómenos. Esse é o território da ideologia. Somos muito mais feitos de ideologia do que pensamos. Ela é uma teia onde tecemos. Às vezes penso, se eu estou tão cansado da ideologia e a ideologia é tudo - as palavras que escrevo, que digo, que ouço, os silêncios, disse-o aqui no outro dia para que não houvesse espaço para dúvidas, os silêncios estão carregadinhos de ideologia - e se a ideologia é o (des)prazer da demonstração do ego, a morte da comunidade, da polís, o que é que me separa do suícidio? E não estou apenas a falar do suícidio físico, estou a falar principalmente do ir morrendo em vida? Porque continuo a querer crescer e sinto-o, quando alguém se perspectiva enquanto entidade a crescer está-se borrifando para a sua presumível morte. Só consigo encontrar uma explicação. A mesma que encontro quando estou numa sala de teatro a tentar construir uma determinada visão. É um brincar. O prazer de olhar cada coisa como uma peça e de a desmontar. E, para complicar mais a legibilidade deste texto, vou contar como é que este tipo de pensamentos tão intimos me chegaram ao post: li esta notícia do Dossier Freeport. E percebi que só uma coisa nos pode safar da morte ideológica que estamos em conjunto a tramar: mantermos este prazer de brincar, de desmontar as coisas como se fossem peças de lego.
E para isso começo por identificar o material: a notícia é de 31 de Janeiro e está dentro de um Dossier Freeport criado a 10 de Janeiro.
E o que é que ela diz: que o Correio da Manhã noticia hoje (o que é logo uma actualização da notícia) que uma assessora de Manuel Pedro, sócio da Smith & Pedro, terá sido inquirida em 2004 pela Polícia Judiciária e que terá dito que ouviu falar de 400 mil para pagar ao Sócrates. Afirmou ainda que Manuel Pedro se gabava de controlar autarcas. E que assistiu a um processo de destruição de provas. Termina assim, já em 2009, a notícia: "As autoridades suspeitam de que o tio e o primo de José Sócrates, respectivamente Júlio e Hugo Monteiro, tenham cometido o crime de tráfico de influências. O mesmo jornal conta que o Ministério Público acredita que Hugo Monteiro recebeu dinheiro em numerário da empresa Smith & Pedro no âmbito da legalização do Freeport e que avançou com um pedido de levantamento do sigilo bancário em relação ao tio de Sócrates."
O que mais choca aqui é que o trabalho de manipulação ideológica que é aqui feito embora seja tão grosseiro, é tão eficaz. Se não fosse já especulação ideológica eu diria que quanto mais grosseiro é mais eficaz se torna. Há uma coisa que não sei se o Correio da Manhã o faz, mas que não encontro no Público: a identificação de que este depoimento da assessora foi realizado em 2004 no correr de uma investigação que não produziu prova relevante para a constituição de um processo crime. Ou seja, de que em 2004 uma assessora terá dito no âmbito de uma investigação criminal que Sócrates terá recebido 400 mil (euros, contos, dólares, botões de punho?) e que essas mesmas declarações não conseguiram ajudar as autoridades que realizavam a investigação a provarem nada. Não só o Público não esclarece isso, como, para completar essa falha, actualiza a notícia com a referência às actuais suspeitas sobre o tráfico de influências do tio e do primo de Sócrates. E cita o Correio da Manhã para dizer esta coisa absolutamente espantosa: "O Ministério Público acredita que...".
Uma conclusão surpreendente para aqueles que me lêem: não desprezando o papel que a comunicação social tem no incremento deste trabalho ideológico, e mesmo ajuntando-lhe esse acontecimento que não seria prevísivel de o Público replicar uma notícia do Correio da Manhã - e não é a mesma coisa de o ter como fonte - não podemos sacudir a água do capote. Esta notícia consubstancia o seu grosseiro trabalho de manipulação apenas quando o leitor a lê grosseiramente. Não é possível, e espero tê-lo deixado claro, que uma leitura mais atenta não evidencie logo os defeitos de fabrico deste material de contrabando ideológico.
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