terça-feira, julho 21, 2009

Exercícios de estilo

Há vezes em que me apetecia ser o Pacheco. Despachá-los com uma pachecada, isso é que era. Quando os gajos começam a lamber-se todos uns aos outros com tiradas de naftalina, ou vaselina, que é para o galanteio escorregar melhor pela goela, vossa excelência é o maior brochista da praça, diz um, elogiando o amigo, o outro, curvando a espinal medula, antes de ir defender o sacrossanto direito dos trabalhadores, sim, porque esta canalha que se mete a fazer broches na via pública com salamaleques de estalo são todos uns defensores da classe operária, gostava de ser como o Pacheco, tê-los deste tamanho e mandá-los levar no cu. Deve ser uma fantasia erótico-literária, esta. Tenho esta ideia de que se tirar a prótese e por entre as falhas dentárias começar a praguejar, cuspindo gafanhotos e vernáculo que dói, recupero a minha infância. E o que eu dava para recuperar a minha infância. Há vezes em que ela me vem, em fascículos, em peças separadas para montar. Há três dias que ando a sonhar com o Rio Cego. O Rio Cego não era um rio, era um pedaço de água órfã que descia desde uma espécie de montado - uma espécie, que em Mafra não havia montados, mas a minha mãe era alentejana e por isso aquele morro montado ficou - e vinha encalhar numa ribeira que as mais das vezes, antes do verão, secava. Quando eu vinha da escola era um entre muitos dos putos que desciam pela vereda do Rio Cego, que saltavam as pedras e que poupavam assim dois quilómetros do caminho que seria preciso fazer se fôssemos pela estrada da Paz, da Mougueta, até à A da Pera. E já nem sei porque é que me fui me lembrar do Pacheco e o misturei com a minha infância, com este desejo de a resgatar. Lembrei-me, já está, agora também não vou ficar a remoer o assunto. O que eu sei é que por vezes me dá uma fúria muito grande e só me apetece começar a dizer palavrões, a chamar todo o mundo e ninguém de ladrões, de vigaristas, estamos em 2009, ninguém tem culpa que eu tenha quarenta e sete anos e que tenha começado a formar a minha consciência política com o Kennedy, com Paulo VI e com Raoul Folloreau, isto para não falar do se bem me lembro do Vitorino Nemésio, das danças e cantares do Pedro Homem de Melo e das conversas em família do Caetano, e que nessa altura expressões como sonho, utopia, mundo melhor, justiça, excitarem-me mais do que, por entre o buraco da fechadura do quarto da Domingas, a serviçal lá de casa, espreitar as suas grandes mamas brancas descaídas que tanto me aterrorizaram a infância, uma mulher é isto, caramba!, já não me bastava os relatos terríficos do Manecas que nos desvendava os segredos do grande livro do kamasutra, eu achava que nunca iria conseguir fazer aquelas piruetas com uma mulher, também pudera, uma mulher para mim era a Domingas, ensinou-me quase tudo, a ser doce, a gostar de ficar, a saber apreciar um fim de tarde com os meus irmãos, mas nesse aspecto não, eu nunca lhe disse nada, não lhe podia dizer que a espiava enquanto ela se mudava para vestir a camisa de dormir e deitar-se na cama, foi a minha dor, cresci com um medo terrível de ser homem, de fazer dezoito anos, tinha medo de ir para a guerra em África, eu bem os via a prestarem juramento na praça maior em Mafra, soldadinhos de chumbo, uns voltam outros não, eu não queria fazer dezoito anos, tinha medo, um medo de morte, um medo de morrer, eu não queria ser um homem, tinha medo, um pânico, via as grandes mamas descaídas da Domingas e fechava os olhos, a minha mãe apanhou-me muitas vezes a soluçar, o que é quim paulo, não quero ser homem, mãe, tens muito tempo, filho, tens muito tempo para aprenderes a ser homem, e eu chorava, chorava mais, acho que passei metade da minha infância a chorar, agora quando digo que quero resgatar a minha infância esqueço-me disso, do tempo em que passava a chorar, provavelmente eu apenas gostaria de poder voltar à minha infância para desviver todo o tempo que passei a lacrimejar, não sei porquê, agora deu-me também vontade de chorar, não por alguma tristeza qualquer, deu-me para aqui, lembrei-me de que a vida é um jogo fodido, estou rodeado por gente de merda, vidas de merda, talvezes, fregueses e outros contumazes, era aqui que o Pacheco me safava, eu com uma pachecada punha esta gente toda a pedir à porta da Mitra, um jogo fodido, um tipo diz isto e aparece logo a vozinha estúpida da menina joana do nosso pátio infantil, quem diz é quem o é !, é verdade, quem diz é quem o é, a minha vida sim é uma vida de merda, este verão é um verão de merda, vem aí umas eleições e eu vou ter de votar em gajos de merda, e se não votar na merda daqueles gajos vou ter de andar a lamber as latrinas que uns filhos da puta ainda piores do que os gajos de merda que eu não quero eleger montarão para fazerem delas, das latrinas nutridas pelo chiqueiro das suas merdas, merdinhas e merdolas, o governo da nação, estou farto dos filhos da puta, dos cabrões de merda, dos gajos de merda, hierarquia do horror, do horripilante, o Pacheco é que me tirava deste dessassossego num instante, o gajo tirava os dentes e punha-se em frente ao espelho a dar estalinhos com o cu, peidos, dizia ele, isto sou eu a imaginar, nunca vi o Pacheco, quer dizer vi-o, por um instante, há uns anos, tinha ido ter com o Zé Carretas que estava a ensaiar a Comunidade com o Cândido Ferreira na Cornucópia, o gajo pagava-se com penaltys e pastelinhos de bacalhau, ou uma merda assim, mas nessa altura o Pacheco ainda não era o Pacheco, quer dizer, ele já o era, eu é que ainda não era este merdúnfias que sou hoje, sabia eu lá quem era o Pacheco, o que era uma Pachecada, não sabia nada, tal e qual como hoje, só que agora com menos estilete, estilo, exercícios de.

1 comentário:

Anónimo disse...

JPN no seu melhor! Muito bom, o estilo rápido e cortante, o tema, o folêgo a que nos obrigas...
Vera Azevedo