domingo, julho 05, 2009

A festa de Sophia

Atravessou todo o largo da igreja, empurrando a cadeira de rodas com uma delicadeza que iludia sobre o esforço que despendia para a arrastar. Mesmo antes de saber onde iam, chamaram a minha atenção pela cumplicidade, pela atenção. Envelhecer assim deve estar nos escaparates da poesia mais pura. Eram por isso já meus personagens, daquelas histórias que faço e desfaço para me imaginar contador de histórias. O que eram os dois um para o outro para o serem assim? Um pouco mais de fresco no sol de domingo permitiu-lhes o desafogo de um passeio, pensei. Até que o ouvi dizer, vou-te levar ali à estátua dela. Dela, assim, intimo, sussurrado. E levou-a pelo empedrado arranjado recentemente pela autarquia para honrar o caminho que nos liga ao chão da poetisa. A delicadeza com que colocou a cadeira de modo a que ficassem os dois face a face com Sophia impressionou-me, até porque contrastava com a atitude de alguns turistas que, com alguma alarvidade, fotografavam o rosto da poetisa. Ficaram assim alguns momentos, largos, o tempo de uma vida. Depois ele levou-a até ao poema junto do muro e ali estiveram demoradamente, deliciados, a lamber as feridas das palavras. Ainda a levou até ao beiral do Miradouro para um último saboreio. Lisboa assim expandida é redondilha, é estrofe, é quase rima. Depois, com a mesma ligeireza mas com o rosto iluminado, atravessaram outra vez o largo, onde neste trajecto, contando ainda com o desvio até um banco de jardim que estivesse livre, gastaram mais de uma hora. A última vez que os vi estavam sentados no banco. Estavam em festa. Os nossos velhos precisam de sol, de praças abertas. E muitas vezes ficam engavetados nos seus andares-prisão. Depois esfumaram-se. Voltaram às suas vidas divididas entre o rol de medicamentos na farmácia, o tentar sobreviver mais um bocado, o tentar passar entre os carros estacionados em cima do passeio, a compra de umas latas para sobreviver ao resto do mês. Esfumaram-se e no fumo que os levou eu vi nitidamente a festa de Sophia.

5 comentários:

Anónimo disse...

Tenho dificuldade em destacar os teus posts, mas só neste momento apenas vou dizer que este é o teu post mais bonito.

IPQ disse...

Bonito, meu amigo

blue disse...

que sorte, assistir a um momento assim pelas tuas palavras...

Cristina Gomes da Silva disse...

Devias escrever sempre assim :)
Abraço

disse...

Quim, esse largo é-te familiar. Dos teus dois 'personagens' também, pelos vistos. Imprime e oferece-lhes este texto.