terça-feira, outubro 20, 2009

Os dias assim

Quando eu tinha dezanove anos lia Brecht,
Rousseau, Vitor Hugo,
acreditava na redenção dos aflitos, dos pobres,
das madalenas e de todos os humildes que comiam o pão
que o diabo amargou.
Não tinha ideologia. Tinha bandeiras. Desfraldadas pelo vento norte,
foram épicos os meus dezanove e os vinte e
ainda mais uns tantos que se seguiram.
O cosmos era uma laranja cortada em duas metades
cujo sabor, significado,
e sentido,
estavam ao alcance da minha compreensão.
Não me posso queixar do que se seguiu. Entre esse tempo e os dias de hoje
passaram-se vinte e oito anos o que quer dizer
que me posso considerar abençoado por um deus a que,
por nele descrer,
não pago tributo.
E se, por vezes,
quando sou preterido de um concurso qualquer,
sejam os jogos florais ou literários da minha rua,
o casting para fazer de homem-sanduiche,
de louco ou de polícia sinaleiro,
o campeonato da sueca,
ou até o totoloto,
série um, série dois ou euro milhões,
praguejo, berro, grito
com a incompetência do julgamento que me excluiu,
a verdade é que,
em relação ao grande desafio,
o maior de todos os maiores concursos
o que verdadeiramente conta,
o de, dia a dia,
acordar do lado dos vivos,
dos que têm de,
oh grande angústia da existência e do drama humano!,
tomar o café matinal,
descer as escadas três a três,
ouvir o chilreio na árvore em frente,
em relação a esse,
olho a minha vida,
o que fiz, o que não fiz, o que talvez venha a fazer,
a quantidade de gente que todos os dias fica por aqui,
sem um aceno sequer de despedida,
e não percebo porque é que o grande júri,
o supremo tribunal
desta vida,
continua a deixar-me ir a jogo. Vou, e isso é que (me) importa.Já não leio Brecht,
Rousseau,
- abro parêntesis, ainda me emociono com a saga de Jean Valjean-
creio tanto no mistério dos aflitos
como dos abençoados pela sorte e
pela fortuna,
e o meu único combate é
chegar ao fim do mês,
de cada mês.
Não tenho relógio. Não preciso.
Dou pelos dias a passar pelas tarefas de que
estou,
solenemente,
investido.
Pagar a renda de casa.
Regar a hortelã. Pouco. Mais a salsa.
Menos ainda o cacto aloé. Ou
a lucialima. A água,
também encharca.
Dar a quinzenada ao petiz.
A água quando é demais afoga.
Traçar a bissectriz.

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