Não sou melómano. Sempre tive uma grande dificuldade para a música. Para a concentração, para o canto. Desde tenra idade. Lembro-me, era cachopinho, cantávamos no coro das crianças, em Mafra, o que eu gostava era as partes em que cantávamos todos juntos, disfarçava-me na pequena multidão de vozes. Com o tempo tentei várias estratégias contra isso. Tive aulas de voz e canto, quando fui actor. Ouvi detrás para a frente as músicas, tentando identificar os vários instrumentos. A verdade é que por uma razão ou por outra, nunca desenvolvi essa aptidão. Se coloco um cd passado dois ou três minutos já nem me lembro que o coloquei a tocar. Quando os discos eram de vinil, voltava incessantemente a colocá-los no princípio, para tentar ouvir finalmente as música sem nunca virar o disco, para ouvir o outro lado. Vejo agora que isso talvez me tenha moldado o próprio pensamento. Nunca me preparei o suficiente para o lado B e por isso, quando o vinil deu lugar ao cd, adaptei-me à nova linguagem tecnológica sem me aperceber que me faltava algo de fundamental: a compreensão da importância do Lado B. No amor, no trabalho, no lazer, em tudo. O que aprendemos nos primeiros anos da infância e da adolescência molda-se aos nossos gestos como se fôssemos nós próprios e a certa altura, insanos, até defenderemos isso como a nossa identidade. E esta minha tendência para voltar ao princípio da música, ou, como quem diz, do amor, de uma profissão, de uma maneira de estar, se me foi agradável, porque me distinguia dos outros e para o olhar de fora é sempre refrescante ver o mito do eterno retorno a desvanecer-se diante dos nossos olhos, talvez me tenha impedido de perceber o quão sombrios por vezes somos e de como a nossa vida também é iluminada pelas nossas trevas. Eu sei: isto é qualquer coisa que qualquer um de vós que me lê e que não se formou da mesma maneira que eu, tem como adquirido e por isso estranhará a forma como só agora, tão tardiamente, isso me surja no pensamento.
1 comentário:
Só para esclarecer, a lei do eterno retorno não se aplica a estar sempre a voltar ao início. O que ela diz é que tudo o que fazemos retorna a nós.
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