quinta-feira, maio 13, 2010

As coisas são o que (não) parecem. A noite é o que (não) parece. É escuridão. Não é esconderijo, nem esconde-esconde. É escuridão. Dizer que a escuridão esconde ou é esconderijo, tocaia, é ideologia. Eu não tenho nada contra a ideologia que se assume na bandeira desfraldada dos ideais que a agitam. O que me cansa é a ideologia disfarçada de ciência, de mundividência humanista, de moral (a)política. Cansa-me porque acho que a maior parte de nós já cá anda cá há tempo suficiente que justificaria que não nos andássemos a enganar uns aos outros. Ontem tive de dar uma volta imensa para voltar para casa. Desci à Rua da Conceição e estava um cordão policial montado até ao Rossio. Lá tive de montar as minhas tamancas e ir apanhar o metro nos Restauradores para conseguir apanhar o outro lado da rua e poder vir para a Graça. Talvez muitas pessoas achem que sou masoquista, mas achei perfeitamente justificado o cordão de segurança e, por mais que fisicamente me incomodasse muito o banho involuntário de multidão, gosto que a minha cidade se ponha assim bonita para receber o Papa, o Dalai Lama, e quem mais por bem vier para nos lembrar que se não pudéssemos de alguma forma transcender a materialidade que nos configura, a nossa vida seria um dó de alma. E mais: mesmo sabendo que grande parte daquele povo de deus que enchia as ruas já trocou as suas orações quotidianas e dominicais por promissórias nas catedrais do Belmiro ou do Jerónimo Martins (Rui Tavares tem hoje um excelente texto onde assinala esta nossa perda de referências religiosas) agrada-me vê-los assim coloridos, floridos com bandeiras distribuídas pelo Correio da Manhã, roubados à violência do dogmatismo, daquele odor bafiento a sacristia. Muitas vezes perante a intolerância e o fanatismo religioso que, felizmente, cada vez menos vamos encontrando, pensamos erradamente que é a devoção a um Deus que os torna tão mesquinhos. Quando, dei-me conta disso ontem, ao pé do MUDE, ao parar um minuto verdadeiro para olhar aquela turba estranha, talvez seja exactamente o contrário: talvez seja esse curvarem-se diante do inmensurável que lhes dê ainda assim, alguma luminosidade. É claro que o Deus a que se curvam é tão mau quanto eles ( e nós) próprios. É um deus da matança, do obscurantismo, um deus que os manda fazer aquilo para que (também) tendem.
É preciso não confundir nem Deus, nem o Criador de Deuses, o Homem, com esse breve momento em que uma pessoa se ajoelha, canta a alegria da vida, se entrega a uma transcendência para a qual também tende.

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