Todos os anos por esta altura, abeiro-me de mim. O Verão, as férias, o termos um pouco de tempo para olharmos para nós, para o que fazemos, para o que desejamos e sonhamos, quase que torna inevitável a tarefa introspectiva. Fiz uma caipirinha, através da janela vejo os barcos no rio, deito-me a tirar à sorte, a adivinhar quem sou. Navego à vista tal como as embarcações ali ao fundo. Não tenho palavras redondas nem conversa para entreter bisontes na pradaria. Nem me apetece derreter o meu ânimo, o meu entusiamo - ou, como me dizia o meu padrinho para me testar, para saber se poderia falar à homem comigo, "aquela força que nos vem lá do fundo dos tomates" - num fatalismo de merda. A vida é existência pura e crua. A felicidade e a infelicidade são variantes de uma ideologia que agora desprezo. Não querem dizer nada para além do comércio ideológico que celebram. A alegria, a tristeza, a própria melancolia, talvez não, talvez não sejam apenas isso, talvem consigam sobreviver ao discurso-sobre-todas-as-coisas-vivas e ser energia, a nossa energia. Tudo o que consegue escapar à ideologia, à morte de mundo que a linguagem é, pode ainda valer a pena. A violência por exemplo. Deveremos falar de novo na violência. Construímos cidades armadilhadas pela violência contida. O corpo policial não me sossega. Ou só me sossega enquanto não nos bater à porta e não nos disser que aquela porra do vinte e cinco de abril era uma fábula para entreter meninos. Estou cada vez mais violento por dentro. Não falo do terrorismo. Não me é indiferente que o mundo esteja cada vez mais repleto de filhos da puta a comerem-se uns aos outros, a comerem as ideias que sempre fui acalentando na cabeça de uma sociedade mais justa, mais fraterna, mais solidária. Mas não sou deus nem tenho alguma pretensão de fazer que sou. O meu único acto verdadeiramente terrorista é escrever, pensar. Deus, se for esse ser tão misericordioso e justo que os crentes adoram, quando os chamar à sua presença tratará do assunto. O terrorismo é mais do mesmo. Se nem aos vinte anos tive alguma sedução intelectual por ele, não seria agora, quase aos cinquenta, que iria achar-lhe alguma inteligência no gesto, no porte. E não será a promiscuidade entre a moralidade, a política e a mentalidade que me farão alterar essa posição. Viro a minha violência do avesso. Olharmo-nos ao espelho, no reflexo da calçada e percebermos o ser-em-acção-de-transformação que é aquele que se olha, se recria, se inventa no olhar de um outro, a quem, no delírio implosivo deste gesto de mudar-se, chama amante - ou aquele que ama, aquele que é amado - é de uma violência inaudita. Estou cada vez mais violento por dentro. Contra mim. Por vezes já nem me reconheço. E não é uma questão de peso, de barriga, de todas aquelas marcas da idade que nos indispoêm com o espelho. É outra coisa. É o mudar. Há um repente de serenidade, de tranquilidade e esse repente vai-se instalando, sorrateiro. Foi-se a revolta, o instalar na relação com a outra pessoa o sistema de dominação, subordinação. Com quarenta e oito anos não conheci nenhuma casa que não tivesse, para além de janelas, uma porta da rua. A arquitectura das relações, dos afectos, é cada vez mais a ciência de uma liberdade constituida pelo levantamento identitário. O que nos faz permanecer é a vontade e a vontade ilumina-se com a forma como aceitamos esta violência de nos transformarmos para, como se construíssemos um ninho, acolhermos o outro dentro de nós. Nós, os homens, tendo a tendência para pensar a nossa existência psíquica a partir da nossa morfologia, da nossa fisicalidade, não estamos muitas vezes preparados para a ideia de acolhermos dentro de nós. Todo o espectáculo masculino, as manifestações, os fenómenos, é virado para a exterioridade, para a protuberância, e a exuberância, do falo erecto. Se um homem diz entra dentro de mim, parece um jogo de linguagem. É por isso que a acção transformadora de um homem ou de uma mulher no ninho um do outro é tão violenta. A aventura humana, e a experiência construiram-se no mito da perda de identidade. Temos medo de nos perdermos, de nos despersonalizarmos. O amor é o culminar de toda a violência do mundo.
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