Todos os dias. No verão todos os dias contam. Todos os dias tendem para a transcendência em relação a uma qualquer espécie de infinito. Lembro-me disso em Altura, em Carcavelos, na Ericeira, em Santa Cruz, no Moledo, na Figueira, em S. Pedro do Sul, na Nazaré, na Costa da Caparica, lembro-me disso em menino, em adolescente, em jovem, em homem, agora na meia idade, é uma memória farta de episódios, peripécias. Estive quase a pensar que isso não seria possível na Foz do Arelho. Consegui-me habituar àquele areal que nos esfrega os pés, numa esfoliação obrigatória. Ou à rispidez das águas do mar, bandeira amarela e vermelha, e água nem sempre transparente da praia da lagoa. Mas o que me custava era aquele povo-povão, aqueles povos duros e ásperos do norte que trazem pára-ventos, chapéus de sol, lancheiras, cadeiras de lona e que falam muito alto, que têm calções de banho antigos, peles brancas, que deixam os seus restos espalhados pelo areal. Há muito que me deixei de me preocupar pela incongruência de uma sedução intelectual pelo popular conviver com este desprezo arrogante por estas manifestações existenciais do povo-povão. É verdade que eu não me identifico com o que eles querem, é bem certo que a forma como se projectam na comunidade não coincide com a minha, é muito claro que para mim que os seus valores não são os meus, mas a verdade é que na minha imagem de árvore, as minhas raízes são também, metade de mim, as destes povos de vida ríspida do Norte. Descendo de um cruzamento entre uma família da pequena burguesia de uma cidade da raia alentejana e uma família muito humilde do Minho. O meu pai, o filho varão, por ter seguido os estudos religiosos, teve a oportunidade de se formar na Universidade de Fribourg, mas os seus dois irmãos têm a escolaridade básica dos tempos do Estado Novo. Um deles viveu muito tempo numa ilha da cidade do Porto até comprar uma casa camarária, e a outra fez toda a sua vida de trabalho na pequena vila onde os três nasceram. E era isso que me custava. Olhava aqueles povos duros, ásperos, naquela imagem estereotipada dos acampamentos popularuchos e não me queria reconhecer assim. Nem saía do hotel onde estava, um lugar sobranceiro a toda a praia. Estive lá fechado três dias, a observar. Vistos deste modo, lá de cima, em miniatura, estes povos de vida ríspida do Norte eram parecidos com todos os outros. Foram assim, nesse incómodo reconhecimento, os meus últimos dias de Julho. No primeiro de Agosto, esteve muito mau tempo e aproveitei, com o frio, para fazer uma abordagem psicoterapêutica sobre as minhas origens. Consegui finalmente dirigir-me até cá abaixo, à praia. Vinha disposto a tudo. Mas, suprendentemente, não encontrei sinais deste povoléu que tanto me incomodava, principalmente por pôr a nu os meus preconceitos. Na Foz do Arelho os povos de Agosto são muito mais cosmopolitas que os de Julho, concluí.
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