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quarta-feira, agosto 04, 2010

Todos os dias

Todos os dias. No verão todos os dias contam. Todos os dias tendem para a transcendência em relação a uma qualquer espécie de infinito. Lembro-me disso em Altura, em Carcavelos, na Ericeira, em Santa Cruz, no Moledo, na Figueira, em S. Pedro do Sul, na Nazaré, na Costa da Caparica, lembro-me disso em menino, em adolescente, em jovem, em homem, agora na meia idade, é uma memória farta de episódios, peripécias. Estive quase a pensar que isso não seria possível na Foz do Arelho. Consegui-me habituar àquele areal que nos esfrega os pés, numa esfoliação obrigatória. Ou à rispidez das águas do mar, bandeira amarela e vermelha, e água nem sempre transparente da praia da lagoa. Mas o que me custava era aquele povo-povão, aqueles povos duros e ásperos do norte que trazem pára-ventos, chapéus de sol, lancheiras, cadeiras de lona e que falam muito alto, que têm calções de banho antigos, peles brancas, que deixam os seus restos espalhados pelo areal. Há muito que me deixei de me preocupar pela incongruência de uma sedução intelectual pelo popular conviver com este desprezo arrogante por estas manifestações existenciais do povo-povão. É verdade que eu não me identifico com o que eles querem, é bem certo que a forma como se projectam na comunidade não coincide com a minha, é muito claro que para mim que os seus valores não são os meus, mas a verdade é que na minha imagem de árvore, as minhas raízes são também, metade de mim, as destes povos de vida ríspida do Norte. Descendo de um cruzamento entre uma família da pequena burguesia de uma cidade da raia alentejana e uma família muito humilde do Minho. O meu pai, o filho varão, por ter seguido os estudos religiosos, teve a oportunidade de se formar na Universidade de Fribourg, mas os seus dois irmãos têm a escolaridade básica dos tempos do Estado Novo. Um deles viveu muito tempo numa ilha da cidade do Porto até comprar uma casa camarária, e a outra fez toda a sua vida de trabalho na pequena vila onde os três nasceram. E era isso que me custava. Olhava aqueles povos duros, ásperos, naquela imagem estereotipada dos acampamentos popularuchos e não me queria reconhecer assim. Nem saía do hotel onde estava, um lugar sobranceiro a toda a praia. Estive lá fechado três dias, a observar. Vistos deste modo, lá de cima, em miniatura, estes povos de vida ríspida do Norte eram parecidos com todos os outros. Foram assim, nesse incómodo reconhecimento, os meus últimos dias de Julho. No primeiro de Agosto, esteve muito mau tempo e aproveitei, com o frio, para fazer uma abordagem psicoterapêutica sobre as minhas origens. Consegui finalmente dirigir-me até cá abaixo, à praia. Vinha disposto a tudo. Mas, suprendentemente, não encontrei sinais deste povoléu que tanto me incomodava, principalmente por pôr a nu os meus preconceitos. Na Foz do Arelho os povos de Agosto são muito mais cosmopolitas que os de Julho, concluí.

sexta-feira, agosto 14, 2009

Verão em Galamares

É quando chega ao fim que recomeça, o verão em galamares. O trabalho que as imagens fazem dentro de nós, fortalecendo-nos. Reconhecer o mundo que nos habita. A extensão de tempo que cabe num mergulho interior. Eu fui feito desta paisagem, desta terra, destes cheiros, deste compasso. Baralhar e dar de novo.

segunda-feira, agosto 18, 2008

Viagens

No sábado quando fui comprar o jornal olhei o Le Monde no escaparate. Apeteceu-me. E à medida que o lia tomei consciência daquilo que sabemos: que o mundo é uma amálgama de culturas, de pontos de vistas, de ideologias, de modos de viver. Deliciosamente diferentes. Tão deliciosamente diferentes que um indivíduo pode, pelo simples acto de se deliciar com a leitura do Le Monde, imaginar que está num país diferente. Há as grandes e as pequenas nuances. O jornalismo do Le Monde - e deixem passar esta cretinice de o avaliar pela leitura de algumas folhas da sua edição de sábado - é um trabalho onde, mesmo na notícia trivial, há o recurso a figuras de explicação que transformam o objecto notícia. Se eu fosse enólogo diria que o jornalismo do Le Monde é encorpado. Mas não é destes posts-achismos que este texto se alimenta. A ideia é a viagem. O viajar ali sentado naquela esplanada de Telheiras, enquanto o chuvisco, a brisa, as folhas das árvores, me remetem para os fins de Verão no Minho, em Caldelas. Ontem, já sem motivo, comprei o El País. Ficou esquecido na mala do carro, li apenas algumas páginas. Hoje vou descer ao Rossio e, saltando pela maior dificuldade em me relacionar com a língua inglesa, vou comprar um jornal londrino. O veraneio é isto, inventar lugares para o existir.

sexta-feira, agosto 31, 2007

Outra vida para além dos blogues

Voltarei ao Respirar na próxima sexta feira depois de uma pequena pausa. É verão, verão. Até já.

Que se lixe o real!

A maioria dos meus amigos que trabalham em jornais, televisão, rádio expressam-me muitas vezes o agrado pelo que escrevo aqui, pela forma como eu penso e articulo as ideias com uma única excepção: o jornalismo. Chegando a esse tema quase todos acham que eu não percebo nada do assunto, que eu tenho essa mania irritante de pensar que o jornalismo é a causa de todas os males, que tenho um jornalista frustrado a gritar dentro deste crítico de sofá, que a minha incapacidade de perceber as coisas me tornou ainda mais arrogante e que tenho uma mala pata com o jornalismo.
É claro que por muito que a minha tendência para perorar sobre as coisas me seja inata e gratificante - não me posso esquecer que sou filho de um antigo orador eclesiástico - não sou desprovido de algum bom senso: prefiro conservar os amigos do que as minhas ideias. Até porque percebi que, entre eles, sem ninguém os ouvir, eram os maiores críticos da actividade que realizavam e conseguiam marcar pontos na sua análise. E por isso nos últimos tempos fui-me treinando para deixar de querer comentar de uma forma tão recorrente o trabalho jornalístico.
Isso levou-me a duas conclusões (não partilháveis claro com os meus amigos jornalistas): a primeira de que aquilo que ainda chamamos jornalismo tem de facto cada vez menos importância. A segunda - e é uma pena que continue sem a poder partilhar com os meus amigos que trabalham em jornais, na televisão e na rádio, e já não porque os vise, mas porque eles não aceitam de bom grado que exteriormente lhes venham dizer que o jornalismo está em vias de extinção - é que eles não têm culpa nenhuma da morte do jornalismo.
Nem os jornalistas nem os editores, nem os directores de jornais nem os proprietários dos títulos. Por exemplo o Oliveira e o Marcelino não são causa, são consequência. Não é o Oliveira que está a estragar o jornalismo português. Foi a degradação da actividade jornalística que permitiu que um empresário como Oliveira pudesse comprar o jornal Diário de Notícias e transformá-lo num jornal a dias. A chamada tabloidização da imprensa, seja jornais, televisão ou rádio, não é uma causa da tablodização do real mas uma das suas mais visiveis consequências.
Ontem alguém me perguntava pelo fenómeno dos blogues e eu dei por mim a dizer-lhe que achava que havia uma natureza luminosa do trabalho blogosférico, que consistia na abertura para a expressão de cada um como processo de construção identitária, ao mesmo tempo que me parecia crescente uma dimensão muito perigosa que era a de criarmos em comum a ideia de que é mais importante adquirirmos rapidamente um lead de um determinado acontecimento que nos permita tomarmos partido e posicionarmo-nos face a ele do que tentarmos aprofundar a nossa relação com o conhecimento real do mesmo.
Dei aliás um exemplo que há uns meses me chocou muito. Houve uma determinada entrevista a um chefe de um gang do Rio de Janeiro que foi difundida pela internet, através de blogues e por correio electrónico, e em que o entrevistado explicava que o pior estava para vir, que poderiam até usar armamento nuclear e que já não havia regresso possível. Esta entrevista circulou como se fosse verdadeira embora se tratasse de uma rubrica assumidamente imaginária de um determinado jornalista brasileiro. Quando isso deixou de circular no correio electrónico, e passou a circular na blogosfera, foi possível - graças ao hipertexto e aos comentários - desmascarar a notícia. Ora era curiosa a reacção dos comentários. Supondo que por exemplo havia um determinado comentário que desmascarava a notícia e que fornecia o link para a coluna de onde tinha saído a entrevista imaginária, os dois ou três comentários seguintes foram de espanto, de incredulidade, mas mais abaixo, começaram novamente a surgir comentários ao próprio discurso do entrevistado, como se ele fosse verdadeiro. E depois apareceram os contra argumentos a estes comentários, esquecendo já a reposição da verdade que tinha sido feita. Ou seja, foi só passar algum tempo e entre cento e tal comentários estavam quatro que se referiam ao desmascarar da falsa notícia. Os outros, os que lhe antecederam e os que lhe sucederam, vinham estabelecer uma linha de argumentação que tinha a falsa notícia como boa. Ou seja, grande parte das pessoas demonstravam uma grande incapacidade em abandonarem os aparatos ideológicos de que se tinham fornecido para discutir um determinado facto mesmo que ele fosse desmentido.
No caso Maddie também se passou algo muito curioso. A certa altura começou a circular a notícia de que tinha sido descoberto sangue no apartamento onde, alegadamente, a menina tinha dormido. Com essa notícia passou também a ideia de que a criança teria sido assassinada. Eu estava numa vila do Minho nessa altura e assisti de forma muito curiosa ao modo como a informação chegava ao único café que vendia jornais e de repente se disseminava pela vilória. É claro que a ideia de que os pais tinham matado a menina e escondido o corpo, até por causa do antecedente do caso Joana, começou a surgir e ao mesmo tempo a discussão pia sobre a incapacidade dos pais terem cometido tal acto. A polémica saltava etapas, factos e de repente já estava na condenação, no julgamento. Dias mais tarde veio a notícia de que o sangue do apartamento seria de uma outra pessoa que entretanto lá passara. O que era mais interessante é que essa nova notícia não desarmou nenhum daqueles que na vila já tinham tomado posição e que dias mais tarde, quando se começou a falar do sangue no carro alugado pelos pais, vieram comprovar aquilo que, uns dias antes, a opinião discutida já sabia.
Este é um excelente caso para percebermos o quanto a tablodização do real condiciona a indústria jornalística. É que a componente de realidade de uma notícia encarece em muito a produção da mesma. Custa muito mais investigar, deixar o jornalista levantar-se da cadeira e sair à procura da informação. E tudo isso se agrava quanto a indústria de conteúdos informativos depende cada vez mais de dispositivos tecnológicos dispendiosos. Ora se eu posso produzir uma informação que o público vai consumir com o mesmo deleite por menos, porque irei gastar mais dinheiro e ainda por cima em mais tempo, arriscando-me a perder na linha de montagem o prazo de validade de uma determinada história? Com uma boa agenda de contactos o jornalista pode facilmente validar o material enlatado ou os comunicados e informações à imprensa que circulam pelas redacções. Estamos a falar de uma indústria de conteúdos onde, por exemplo, grande repórter é, frequentemente, um titulo dado a veteranos que já pouco ou nada fazem em termos jornalísticos, isentando-os daqueles cumprimentos de deveres que qualquer outro jornalista assalariado tem de cumprir.
Deveremos por isso deixar a questão da morte do jornalismo para os jornalistas e para aqueles que fazem parte do pequeno circuito de discussão do problema. Não é importante nem decisivo para compreendermos a agonia do real no nosso mundo de todos os dias. Além disso eles já têm muito que se preocupar com a crescente função de amplificação que lhes é atribuída pelas diferentes forças sociais, económicas, políticas e culturais.
Até porque a tablodização do real é o verdadeiro problema enquanto realização de um determinado número de condições que secundarizaram o papel do paradigma da verdade na sociedade contemporânea. Nesse aspecto é impressionante como uma corrente que se apresentou como tão minoritária - o pós-modernismo - acabou por ter uma produção ideológica que afectou de tão grande forma a desvalorização da ideia de verdade na vida de milhões e milhões de pessoas. Tudo isso era necessário, claro, não é a crítica a esta corrente do pensamento que aqui se faz. É a percepção de que hoje há uma grande dificuldade em organizar a aproximação ao real através das condições que organizavam a ideia da procura da verdade. Estamos todos metidos no mesmo jogo. Que se lixe o real! O que ainda não percebemos, nem estamos preparados para discutir o quanto isso afecta o nosso quotidiano, é que sem o real a sustentar-nos o pensamento, a anterior categoria do ficcional, de tanto acorrer a tudo o que é processo de significação, fica exausta, cansa-se, deixa de poder significar, deixa de poder fazer-nos sonhar.

quinta-feira, agosto 30, 2007

Estranha forma de vida

Dizia-me, amo os finais, tenho uma extraordinária propensão para fazer florir as rosas quando elas murcham nas mãos áridas dos amantes. Ela falava sem se dar conta da beleza que lhe crescia nos dedos de mulher. A maior parte das pessoas que conheço são pessoas de sentimentos perfeitos e normais. Esvaziam-se de um amor antes da chegada do próximo que pode ou não coincidir com a Primavera. Será aliás sempre verão, por mais tardio. Não sou assim. Primeiro preencho os espaços em branco e só depois, a meio da caminhada, começo a libertar carga, até que da última viagem não reste senão um torpor. Aprecio as pessoas arrumadas sentimentalmente e tiro delas inspiração para os meus melhores dias mas não consigo repetir a façanha. O que procuro nunca existe. Eu gostava de encontrar um dia uma mulher que me tirasse o desespero. A sensação de agonia. A dor anestesiada de uma solidão. Essa mulher não existe. Nunca existirá. Não porque não exista. Porque entretanto me ocupo com mulheres que me fazem sofrer, que me desesperam, que me agoniam. Estou a ser injusto. Poucas são as que me agoniam, que me desesperam, que me fazem sofrer. O que acontece verdadeiramente é que não me libertam da agonia, do desespero, do sofrimento. Ao invés disso preeenchem-me de cores, de alegria, de envolvimento, de doçura tal que eu sinto, sempre pela primeira vez, que posso abrir os olhos diante da verdadeira agonia, do verdadeiro sofrimento, do verdadeiro desespero. A mulher que eu procuro não existe. Não porque não exista. Existe, para lá da agonia, do desespero, do sofrimento. Todos os dias dorme no meu leito nú. É com ela que eu me deleito e entrego à mulher que verdadeiramente me beija.

quarta-feira, agosto 29, 2007

B.A.

Deixo-me levar pela noite de Lisboa. Eu não estava para sair. Tinha acabado de derreter uma conversa na esplanada e despedira-me já com o sono a embalar-me mas por me ter esquecido de uns óculos de uma amiga que combinara deixar ficar no café, tenho de voltar à rua. E entre esse volteio os pés perguntam-me por uma dança. DChego ao Music Box no momento em que acabaram os concertos. O Tokio está vazio. Ao lado o Jamaica está mobilizado para umas filmagens. Decido ir até ao B.A. Subo a Rua do Alecrim. As núvens no céu, as cores da cidade, uma certa espessura do ar, dão-me a estranha sensação de que a cidade mirrou, que vai desaparecer dentro da minha cabeça. Subo pela Rua do Norte. Passo por um dos meus bares de culto enquanto começo a pensar que já não tenho idade nem pachorra para vagabundear à noite sozinho. De certa forma procuro-a. Não sei bem quem ela é. É um misto de antigo e novo, alguém que me diga que eu estou vivo e faço parte deste mundo estranho onde eu já não passava com frequência há muitos anos. Entro e saio da Tertúlia, vou à Bela, encontro o Ruy Otero com uma amiga, oferece-me boleia para a Graça, eu acabei de chegar, passo. Aparece-nos entretanto uma gracejana, uma rapariga de porte altivo, linda, doce, vinte e poucos anos garbosos. Peço indicações sobre algum sitio giro, a rapariga simpática oferece-se para meu guia até ao Maria Caxuxa, eu declino, deixo-me entreter a acabar a conversa com o Ruy, enquanto eu lhe peço conselhos sobre locais engraçados para aquela noite do Bairro ele pede-me sugestões de blogues. É justo, troca por troca, falo-lhe do DOC LOG da Leonor, o Ruy é do vídeo, do cinema, o blogue dela não tem nada a ver com os nossos exercícios de diletantelismo, sei que ele vai gostar. Durante anos e anos o Bleza foi a minha pátria e agora, perdido no meio do bairro percebo que o Majong já não tem matraquilhos, aqueles matraquilhos famosos onde cheguei a ver jogar o Joaquim de Almeida e a Maria de Medeiros, tem alfaces, alfaces penduradas no tecto, também não tem o sr. Li, nem a Teresa Roby sentada à porta a conversar com a Sigalho e com o meu irmão, alfaces e um grande balcão de cimento do qual gosto muito, lá estou eu a ser nostálgico, é da solidão, vou ao Bartis, bebo um favaios enquanto cumprimento rapidamente a Bárbara e a Cristina, depois saio para a rua, mais humano, disse duas palavras uma encostada à outra, desço à bica, no Bicaense encontro o Ângelo Torres, estou safo, de repente os conhecidos irrompem, o Luís, a Kitty, a Magda, a filha, que par, são um consolo para a alma, separam-nas dezassete anos de idade, é assim que a nossa criação deveria ser sempre, um ombro, para tudo. Para as farras, para as desforras, para tudo. Vou com a alma aos saltos para casa, chego a casa consolo-me novamente com o meu rio, a minha noite, embalo-me nisto, adormeço que nem uma criança feliz.

quarta-feira, agosto 22, 2007

Catarina do Aué

"Meus queridos amigos,
Escrevo a convidar-vos para um espectáculo muito especial. A viver nesta doideira de ser uma música cigana, entre Nova Iorque, o Brasil e a bela Lisboa, finalmente vou poder partilhar convosco a música que escrevi ao longo de 6 meses, a partir de uma casita do Harlem, a pensar em noites de B.Leza, morabeza, Lisboa e as suas belas curvas, e o Nordeste Brasileiro, que se tornou a minha terceira casa. O Verão passado redescobri uns amigos do Hot, e de um espectáculo do Aué no B.Leza nasceu a Catarina do Aué na minha mente. As músicas são fruto de muito amor às nossas tradições várias, e da paixão de cantar e tocar tambor. E estou desejosa de partilhá-las (finalmente!!) com vocês! O cenário é: Hoquey Bar (mesmo em frente ao Palácio da Vila, Sintra)
6a feira, 24 de Agosto, das 21h as 23h - dado o microclima sintrense ser esperado aparecer, convém trazer uns casaquitos apropriados, que o show é ao ar livre!
Um grande beijo, abraços, e até lá!
Catarina Racha"

segunda-feira, agosto 20, 2007

Acridoce *

O primeiro dia na cidade. Olho para as pessoas. Já tive medo delas. Os meu pânicos são feitos de algodão doce, tal e qual como as núvens do meu tempo-menino. Ou as cores. Um dia, há muitos anos, conheci uma rapariga nas Escadinhas da Escola de Belas Artes. Eu tinha acabado de apresentar uma performance chamada "Às vezes danados!". Ela, estudante de pintura, seduziu-me com as cores das imagens que me descrevia. Já tinhamos falado várias vezes. Eu encontrava-a na Leitaria Garret, com alguns amigos ou conhecidos, amigos de amigos. O mundo era próximo, sei. "Às vezes danados", era o meu grito, entre o exercício teatral e a performance. Fomos para o seu quarto, uma pequena república com vista para o Tejo ali nas Janelas Verdes. Lembro-me de tudo como se fosse hoje. O sabor a medo, o medo da noite, o estremecer, o arrepio de princípio do mundo. Havia apenas a luz do luar, da janela aberta sobre o rio. A cara dela onde tinha inscrito o mapa da sua aldeia. Não sei se jantámos. Ainda éramos pobres. Ela fumou um charro, eu dei uma passa, a medo, só para lhe fazer companhia. E depois ficámos a falar sobre o mundo, dizia-se naquele tempo, os nossos ideais. Éramos artistas, ambos, dos melhores, aos olhos dos pequenos espectadores recíprocos em que nos tinhamos constituido. Eu não sei se um dia saberei falar disto aos que vivem hoje, parece-me um mundo tão antigo, tão dissoluto. E se calhar inútil. Mas disso, dessa inutilidade dos nossos dias não sabíamos naquele tempo. Quando estremecíamos queríamos assegurar o outro patamar do jogo, a memória:
- Um dia mais tarde vais-te lembrar disto? - perguntou-me ela.
- Queres que eu me lembre?
- Claro que quero, porque perguntas?
- As mulheres são tão estranhas. A maior parte pedem-me para esquecer.
- Para esquecer o quê?
- Tudo.
- Eu quero que me lembres.
- Então nunca mais te irei esquecer.
E foi então que fez da minha pele, tela. Pintou-me, por inteiro o arco-iris, a pastel, no chão do meu corpo. Eu estava comovido. Tinha sido educado para perseguir as coisas estranhas e raras e pensava que um dia me iria enfastiar de tanta novidade mas de cada vez parecia que o novo era mais festa, mais alegria. Era como se o inusitado fosse eu por dentro a abrir-me, como se fosse uma flor.
- As tuas cores são tão ardentes.- disse-lhe, quando a minha pele começou a fumegar.
- Ardem-te?
- Queimam-me. São de um calor que ainda não existe.
Ela riu-se.
- Tu amas sempre assim com tanta literatura?
- Estás cansada de mim?
- Tu nunca me cansas. És um homem bonito.
Estava orgulhoso da minha pele translúcida, cromaticamente prolongada com a paisagem.
- É das tuas cores.
Eu, que era um pudorento moço, andei nessa noite nu pela casa, de um lado, a espalhar a minha felicidade. Sentia-me revestido de uma película de mel. Ainda lhe prometi, nunca mais me vou esquecer. E nunca mais me esqueci. Desci a Rua da Adiça com o coração aos saltos, olhava para as pessoas renovadamente, já tinha tido medo delas, um pânico de algodão doce, doce como quase tudo na minha vida. j
[Enquanto ouço Acridoce, in Outra Vida, de João Afonso]

quinta-feira, julho 26, 2007

Amnésia

Deu-me em cantar.
Aconteceu-me fazê-lo como se rebentasse com as cordas vocais. Há uma alegria não-verbal no meu tecido celular. Eu gostava de saber os nomes dos meus enzimas, das várias camadas de pele que é preciso atravessar para ir do meu intestino delgado até à pequena verruga que tenho na ponta do nariz.
Sempre admirei as pessoas que sabem os nomes das coisas. Por mim apetecia-me saber quantos ácidos revestem esta minha mania de ser doce.
Ou queria desfazer-me na minha hipótese química. Morro e nasço dentro de mim e não sei sequer o nome dos meus mortos nem dos meus vivos.
Deu-me em cantar.
Apeteceu-me fazê-lo como se me esvaísse em delicadeza.
Na mais pura delicadeza. A verdade é que se alguma vez alguém me tivesse ensinado os nomes das coisas eu me teria esquecido.
Esqueço-me de tudo. O meu problema não é, agora, o não saber. É esquecer.
Evito até aprender novas coisas, pelo menos, evito aprendê-las pelos metódos escolares tradicionais. Sei, e sei para sempre, e sei-o desde sempre, aquilo que apreendo com os sentidos.
Ainda me lembro intuitivamente dos cheiros, há pessoas que não se acreditam quando o digo, mas eu lembro-me ainda do cheiro da placenta que me revestia, ou da apoteose de odores do interior materno de onde vim.
Há qualquer coisa de incompleto numa vida.
É de noite que a solidão demora o tempo, o lugar. E atrasa mesmo o pensamento. Em todas as noites da minha vida neste universo de equações e de seres o que atrasa o pensamento e com este, a tranquilidade, é a noite.
Admiro as pessoas que são feitas de uma só peça, ou até, metade de uma coisa ou metade de outra. Por exemplo, as pessoas que são apenas constituidas de bondade. Ou de maldade. Eu sou uma amálgama retorcida, traiçoeira. Sou um monstro e a minha monstruosidade é, a minha humanidade.
Sem ela seria menos que um suspiro, um pedaço de vento. Não seria nada.
Há qualquer coisa de incompleto numa frase.

terça-feira, julho 24, 2007

Trincar a cereja

Acordaste-me com o meu sonho: os dois sentados em cima do muro a trincar cerejas. De um e de outro lado do muro, os pezinhos da cereja ligavam-se com os caroços.
Tudo transbordava de um sexo exaltante, exaltado.

segunda-feira, julho 23, 2007

Footsbarne Theatre

Lá fui a Santo André ver "A Midsummer Night's Dream", do grupo que tinha visto no pátio da Comuna há vinte e cinco anos. Não desiludiu. Aquilo que distingue o colectivo, para além de toda a sua qualidade teatral, é a alegria com que representam e como fazem da representação, vida. Ao fim de duas horas de espectáculo sem intervalo, em lingua inglesa, não houve quebras: o texto é apenas um dos níveis da representação teatral. E entretanto é uma delícia ver como o Mário Primo continua com o seu projecto da Ajagato. A enchente de sábado, como o tinha sido na véspera, tem a ver com a ligação que o grupo tem com a zona.

segunda-feira, julho 16, 2007

O para onde vamos é o porque somos?

Nasci com o sol na face, no corpo, na terra onde plantaram a minha placenta, mas é nestas noites que existo verdadeiramente. Há sempre um equinócio perto de mim quando me apaixono e é sempre em Julho. Ou se não for é antes, mas tem de ser verão. Já me aconteceu trocar as voltas ao calendário e por um acaso, apaixonar-me em Maio. Foi verão à mesma.

sexta-feira, julho 13, 2007

Da discussão a escuridão

Tenho uma profunda admiração por todos aqueles que têm opiniões firmes, arreigadas pelo sabor do tempo e das convicções, inabaláveis. Ao longo da minha vida tenho conhecido muitas pessoas assim. Homens e mulheres de um só ideal, de uma só ideia. Uns nasceram comunistas e encaram com grande naturalidade a circunstância de que provavelmente irão morrer comunistas. Ou abriram para os olhos naquele apertado, circunspecto e conservador, "deve ser assim", que nos ressoou durante anos e anos a fio, e que repetem, pelo longe dos tempos que viverão entre nós, "assim deve ser". E quando não são as ideias que os alimentam é uma espécie de ódio. O ódio, o rancor, o desdém, é uma forma persistente de pensamento. Tenho uma profunda admiração por todos aqueles que têm opiniões firmes, arreigadas pelo sabor do tempo e das convicções, inelutáveis do seu ódio-carpir. Admiro-os como quem se estranha. Às vezes, sabendo que alguns deles, poderão passar por aqui, estanco o passo, o pensamento, a expressão. Não sei como foi, foi devagar, tal e qual como os ponteiros do relógio: fui-me educando para a insegurança, para a timidez, para o não saber, para a dúvida, para a transitoriedade das ideias, dos pontos de vista. Não me reconheço em muitos do paradigmas racionalistas, como o estafado "tenho as minhas opiniões mas se me convencerem sou capaz de reconhecer o ajuste da opinião alheia". Eu nunca tive as minhas opiniões. Seria incapaz de chamar minhas às opiniões que me ocupam o pensamento. Se há qualquer coisa de meu nas minhas opiniões é esse momento-fronteira em que me despeço de uma para abraçar a outra. Tudo o que tenho ou sou tenho e sou por empréstimo. Este corpo, que reconheço provisoriamente como meu, quer dizer, que dele trato o melhor possível como se fosse meu. Esta identidade, forçada muitas vezes pelos outros mas também pelo outro de mim mesmo que tantas vezes consigo ser. Tudo isto pode, para muitos, parecer o pesadelo. Somos educados para o não querer, para o não ser, para a conformidade. E só quando todas as mortes que nos sobrevieram nos dizem que nunca mais teremos nenhuma oportunidade de dançar do que este exacto momento em que escrevemos, rimos, conversamos, dançamos ou fodemos, é que percebemos que é neste local exacto onde nos deseducamos que afinal, nos cultivamos. E devemos fazê-lo, cultivar. Um dia, quando eu morrer, gostaria que uma tecnologia entretanto inventada conseguisse resgatar todos os meus sonhos, todos os meus projectos, todas as minhas ideias, mesmo aqueles que ainda estão em esboço, como esta vontade de sair daqui desta mesa do ciber-café como se fosse vento, e que as transformassem em livro, em filme, em poema, no livro, no poema, no filme que eu nunca soube ultimar. Eu por dentro sou febre. Sou um provinciano a arder por dentro com uma febre de mundo. A Celta, quando eu lhe contava os meus sonhos de andarilho, dizia-me que eu tinha de começar a viajar para fora. É verdade. Não é por estar calor, por ser verão, por tudo o que me cerca agora ser literatura de viagens que eu anuio. É porque é verdade.

domingo, abril 22, 2007

Respirar

Respiro fundo, como aprendi, há vinte e tal anos naquela sala de tapetes vermelhos onde o João Mota nos conduzia para lugares imensos de calma, de equilibrio, de encontro. Inspiro profundamente, como se fosse um ar azul, calmo, tranquilo, expiro com determinação, como se fosse um ar vermelho, violento,as guerras que tenho dentro de mim. Cada um de nós é a sua história e a ela reescrevemo-la todos os dias. Em cada sopro. As minhas palavras têm a cor do ar que respiro.

Intranheza

Tudo isto tem daquele humor que salga a vida: por vezes nos meus dias dou-me conta de uma estranheza, uma fina película de estranheza que me cobre os gestos, o olhar e que me faz perguntar o que faço aqui nestes lugares a que chamo meus, com estas pessoas a que chamo minhas. Sorrio. Não são sempre estes momentos, são por vezes, e até, poucas vezes. E já não me assustam, nem me entristecem, nem me perturbam, como aconteceu tantas vezes, ciclicamente, desde a minha infância. É essa estranheza que me intranha dentro de mim, que me torna próximo, que me diz que depois de tantas vidas e tantas mortes, ainda sou eu a transportar os meus dias. Sorrio, esses meus momentos fazem-me descansar da realidade. São um pouco como aquele tirar dos óculos da minha amiga a deixar os seus olhos míopes navegarem por sombras, contornos, pedaços de luz.

sábado, abril 21, 2007

Errância

Esperar a noite. Há uma inquietude. Como se fosse uma brisa. Tudo isto, se não fosse assim, poderia ter sido de outra maneira. Há um travo de angústia, como se fosse uma pequena malagueta incorporada no espírito. As histórias mais bonitas são as que nos dão mais vontade de chorar. Outros que não nós merecem-se na certeza. Nós fomos feitos para isto, para errar. Errantes.

terça-feira, abril 17, 2007

Nobai

Chegaram as longas tardes do jardim do Adamastor. Apetece-me namorar, dar-me em tempo aos amigos, esgotar-me no deleite desta novela diária que é o rio pela milionésima vez. Cansar-me dele, da ponte sobre o rio, desde ali de Alcântara até ao Cristo-Rei. Aquilo que fica quando tudo nesta paisagem se esgotar: os barcos que navegam em sentido paralelo às margens do Tejo. Os cacilheiros são em si parte da beleza que isto é. São-no de outra maneira. Ligam as margens, existem enquanto emanação delas. São belos como belos são os telhados, os telhais, o casario que desce até à àgua. Enquanto tudo isso é, será, como foi, tal como aquele comboio agarrado aos seus carris, os barcos que atravessam o rio, desde a rocha de Conde D'Óbidos até ao desaguar no Oceano, já ali ao pé do segundo forte, são a marca do instável, do precário, do transitório, do provisório em que uma vida - mesmo uma mil vezes repetida neste horrizonte que quase se diria um quadro - se pode tornar. Esses barcos, tanto os que entram como os que saiem são, nesta tarde magnífica de um Abril quente, a verdadeira metáfora deste viver que aqui quase se diria tela, pintura. E de repente, através da minha sombra reflectida no papel, apercebo-me de uma pergunta sem resposta: o que é que fazemos aqui? O que fazemos e o que deveremos fazer? Sentarmo-nos, aquietarmo-nos na ilusória sensação de uma bidimensionalidade que nos fará fazer parte da tela? Ou darmos livre curso a um quase irrepremível desejo de sermos onda, quer dizer, movimento, acção e transformação?

segunda-feira, abril 16, 2007

Terapia breve

Apeteceu-me de repente abraçar vivos. Demorar-me assim numa tarde, ou mesmo, no seu fim. Fechar os olhos e dançar. Dizer que sou dono da minha vida, aquela mesma mentira piedosa onde, em tempos mais lúcidos, me crucifico. Tudo isso é simultaneamente lascivo. O não saber para onde vou, o perder-me na multidão, o ter medo do escuro. Como que um cheiro a sal. A corpos nús, molhados pela água, pela areia. A metafísica a mim, dá-me tesão.