quinta-feira, julho 26, 2007
Amnésia
Deu-me em cantar. Aconteceu-me fazê-lo como se rebentasse com as cordas vocais. Há uma alegria não-verbal no meu tecido celular. Eu gostava de saber os nomes dos meus enzimas, das várias camadas de pele que é preciso atravessar para ir do meu intestino delgado até à pequena verruga que tenho na ponta do nariz. Sempre admirei as pessoas que sabem os nomes das coisas. Por mim apetecia-me saber quantos ácidos revestem esta minha mania de ser doce. Ou queria desfazer-me na minha hipótese química. Morro e nasço dentro de mim e não sei sequer o nome dos meus mortos nem dos meus vivos. Deu-me em cantar.
Apeteceu-me fazê-lo como se me esvaísse em delicadeza. Na mais pura delicadeza. A verdade é que se alguma vez alguém me tivesse ensinado os nomes das coisas eu me teria esquecido. Esqueço-me de tudo. O meu problema não é, agora, o não saber. É esquecer. Evito até aprender novas coisas, pelo menos, evito aprendê-las pelos metódos escolares tradicionais. Sei, e sei para sempre, e sei-o desde sempre, aquilo que apreendo com os sentidos. Ainda me lembro intuitivamente dos cheiros, há pessoas que não se acreditam quando o digo, mas eu lembro-me ainda do cheiro da placenta que me revestia, ou da apoteose de odores do interior materno de onde vim.
Há qualquer coisa de incompleto numa vida.
É de noite que a solidão demora o tempo, o lugar. E atrasa mesmo o pensamento. Em todas as noites da minha vida neste universo de equações e de seres o que atrasa o pensamento e com este, a tranquilidade, é a noite. Admiro as pessoas que são feitas de uma só peça, ou até, metade de uma coisa ou metade de outra. Por exemplo, as pessoas que são apenas constituidas de bondade. Ou de maldade. Eu sou uma amálgama retorcida, traiçoeira. Sou um monstro e a minha monstruosidade é, a minha humanidade. Sem ela seria menos que um suspiro, um pedaço de vento. Não seria nada.
Há qualquer coisa de incompleto numa frase.
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