domingo, agosto 29, 2010
Como se fosse uma espada...
Logo que acabei de tirar a fotografia e a olhei no écran do telemóvel, pareceu-me que era uma foto de um outro tempo, mais antigo. Não tenho nostalgia das coisas antigas, disse de mim para mim, desculpando-me pelo instante interpelativo que aquele olhar demorou. Há qualquer coisa que eu não sei pensar quando olho esta imagem, a luz magnífica sobre o rio, mesmo num dia assim, encoberto. E este não saber pensar é distinto do sentir que perco a memória de algumas coisas, acontecimentos dispersos de esquecimento ou bloqueamentos com que vou brincando, é da idade, é o alzheimer. Este não saber pensar é mesmo uma indisponibilidade para o pensamento. Estou a ser sincero. Poderia escrever penso que, acho que, na minha opinião, e o texto passaria com a mesma facilidade com que vou soletrando aqui o meu contrabando de ideias. Digo não saber pensar e depois entretenho-me, entretenho-vos com o meu pensamento sobre isso. Mas houve uma pequena pausa. Não sei se repararam. Foi muito pequena no texto, imensa dentro de mim. Deu para correr e esvoaçar sobre toda a minha vida. Dizem que no instante em que morremos a nossa vida passa num segundo por nós como se fosse um filme. O verde, o vermelho, o azul. O cor de laranja, o lilás, o violeta. O castanho da terra. Há cores e cores e arco-íris insensatos e transbordantes na minha pequena história de vida. Uma pequena pausa, minúscula no texto, gigante em mim. Provavelmente esta pequena paragem é como se fosse um ensaio do que uma morte pode ser. Na incapacidade de a pensarmos, à morte, simulamo-la, cada um a seu modo. A mim dá-me para este cinza majestático. As cores que partiram da imagem deixaram-na na sua crueza quase religiosa. Fecho os olhos e comovo-me. É sempre a minha defesa quando o mundo é maior que a minha faculdade de o pensar: fecho os olhos e traço uma linha directa com a matéria corporal que me definee faço-o através de uma emoção que eu não saberia nunca, anatomicamente, localizar. É o meu instante religioso, de magia. Estou a ser sincero. Na insinceridade militante que é escrever, estou a ser o mais verdadeiro que consigo: a imagem a preto e branco do lugar onde julgava que estava antes de uma pausa me arrastar para uma enxurrada de coisas, pessoas, uma enxurrada a sério, de repente a nossa vida torna-se nisto, uma enxurrada indistinta, atravessa-me como se fosse uma espada. E a ferida que faz sara no próprio corte que se transforma numa ponte, num pequeno lugar de passagem.
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