Logo que acabei de tirar a fotografia e a olhei no écran do telemóvel, pareceu-me que era uma foto de um outro tempo, mais antigo. Não tenho nostalgia das coisas antigas, disse de mim para mim, desculpando-me pelo instante interpelativo que aquele olhar demorou. Há qualquer coisa que eu não sei pensar quando olho esta imagem, a luz magnífica sobre o rio, mesmo num dia assim, encoberto. E este não saber pensar é distinto do sentir que perco a memória de algumas coisas, acontecimentos dispersos de esquecimento ou bloqueamentos com que vou brincando, é da idade, é o alzheimer. Este não saber pensar é mesmo uma indisponibilidade para o pensamento. Estou a ser sincero. Poderia escrever penso que, acho que, na minha opinião, e o texto passaria com a mesma facilidade com que vou soletrando aqui o meu contrabando de ideias. Digo não saber pensar e depois entretenho-me, entretenho-vos com o meu pensamento sobre isso. Mas houve uma pequena pausa. Não sei se repararam. Foi muito pequena no texto, imensa dentro de mim. Deu para correr e esvoaçar sobre toda a minha vida. Dizem que no instante em que morremos a nossa vida passa num segundo por nós como se fosse um filme. O verde, o vermelho, o azul. O cor de laranja, o lilás, o violeta. O castanho da terra. Há cores e cores e arco-íris insensatos e transbordantes na minha pequena história de vida. Uma pequena pausa, minúscula no texto, gigante em mim. Provavelmente esta pequena paragem é como se fosse um ensaio do que uma morte pode ser. Na incapacidade de a pensarmos, à morte, simulamo-la, cada um a seu modo. A mim dá-me para este cinza majestático. As cores que partiram da imagem deixaram-na na sua crueza quase religiosa. Fecho os olhos e comovo-me. É sempre a minha defesa quando o mundo é maior que a minha faculdade de o pensar: fecho os olhos e traço uma linha directa com a matéria corporal que me definee faço-o através de uma emoção que eu não saberia nunca, anatomicamente, localizar. É o meu instante religioso, de magia. Estou a ser sincero. Na insinceridade militante que é escrever, estou a ser o mais verdadeiro que consigo: a imagem a preto e branco do lugar onde julgava que estava antes de uma pausa me arrastar para uma enxurrada de coisas, pessoas, uma enxurrada a sério, de repente a nossa vida torna-se nisto, uma enxurrada indistinta, atravessa-me como se fosse uma espada. E a ferida que faz sara no próprio corte que se transforma numa ponte, num pequeno lugar de passagem.
domingo, agosto 29, 2010
Como se fosse uma espada...
Logo que acabei de tirar a fotografia e a olhei no écran do telemóvel, pareceu-me que era uma foto de um outro tempo, mais antigo. Não tenho nostalgia das coisas antigas, disse de mim para mim, desculpando-me pelo instante interpelativo que aquele olhar demorou. Há qualquer coisa que eu não sei pensar quando olho esta imagem, a luz magnífica sobre o rio, mesmo num dia assim, encoberto. E este não saber pensar é distinto do sentir que perco a memória de algumas coisas, acontecimentos dispersos de esquecimento ou bloqueamentos com que vou brincando, é da idade, é o alzheimer. Este não saber pensar é mesmo uma indisponibilidade para o pensamento. Estou a ser sincero. Poderia escrever penso que, acho que, na minha opinião, e o texto passaria com a mesma facilidade com que vou soletrando aqui o meu contrabando de ideias. Digo não saber pensar e depois entretenho-me, entretenho-vos com o meu pensamento sobre isso. Mas houve uma pequena pausa. Não sei se repararam. Foi muito pequena no texto, imensa dentro de mim. Deu para correr e esvoaçar sobre toda a minha vida. Dizem que no instante em que morremos a nossa vida passa num segundo por nós como se fosse um filme. O verde, o vermelho, o azul. O cor de laranja, o lilás, o violeta. O castanho da terra. Há cores e cores e arco-íris insensatos e transbordantes na minha pequena história de vida. Uma pequena pausa, minúscula no texto, gigante em mim. Provavelmente esta pequena paragem é como se fosse um ensaio do que uma morte pode ser. Na incapacidade de a pensarmos, à morte, simulamo-la, cada um a seu modo. A mim dá-me para este cinza majestático. As cores que partiram da imagem deixaram-na na sua crueza quase religiosa. Fecho os olhos e comovo-me. É sempre a minha defesa quando o mundo é maior que a minha faculdade de o pensar: fecho os olhos e traço uma linha directa com a matéria corporal que me definee faço-o através de uma emoção que eu não saberia nunca, anatomicamente, localizar. É o meu instante religioso, de magia. Estou a ser sincero. Na insinceridade militante que é escrever, estou a ser o mais verdadeiro que consigo: a imagem a preto e branco do lugar onde julgava que estava antes de uma pausa me arrastar para uma enxurrada de coisas, pessoas, uma enxurrada a sério, de repente a nossa vida torna-se nisto, uma enxurrada indistinta, atravessa-me como se fosse uma espada. E a ferida que faz sara no próprio corte que se transforma numa ponte, num pequeno lugar de passagem.
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