sexta-feira, abril 29, 2011

“Nunca passei de um actor medíocre” (1)

A minha primeira participação na comunicação social (fora aquele jornal, em folhas de almaço, que, aos treze anos fiz para esclarecer o mundo das virtudes do internacionalismo proletário) tinha este título. Era uma entrevista a José Raimond -técnico do FAOJ, a dirigir na altura o sector de Teatro deste organismo - que, com grande humildade, me revelava que tinha abandonado a actividade teatral porque não gostava do esforço físico, concluindo o raciocínio com a frase que encima esta crónica.
Na altura destaquei-a e coloquei-a intencionalmente na testa do texto, de modo a tentar justificar uma asserção que então me corria muito pelo pensamento, a de que, nos vários níveis da administração pública, a gestão do teatro estava entregue a praticantes frustados. Estava nessa altura imbuído de uma ideia - arrogante - de jornalismo enquanto acção justiceira, reordenadora da verdade do mundo.
Eu experimentara assim, no universo dos jornais murais, e com dez anos de antecedência, o espirito agressivo que anos mais tarde viria a encontrar na redacção da SIC onde estagiei ( surge-me como paradigma desse espirito a imagem que conservo de um jornalista a percorrer o caminho que o levava da sua secretária até ao estúdio, onde estava em directo o administrador da Parmalat (em plena crise da guerra do leite) dizendo para os colegas, tal guerreiro antes de um combate decisivo : “Vamos comê-los!”).
Foi esta mesma ideia de um jornalismo redentor, e por isso vingativo como toda a justiça, que me fez sentir um herói saltando sobre a mediocridade geral e muito concretamente sobre aquele homem cuja grandeza só agora descortino.
E, ironia do destino, passados quase vinte anos de ligação ao teatro - nove deles enquanto actor - também eu posso dizer que nunca passei de um actor medíocre (não obstante ter atravessado a cena teatral portuguesa com a minha ambição de ser o único-único actor deste mundo). Um actor medíocre que, na sua passagem pela direcção do Teatro da Trindade, também encarnou aquela asserção que antes tinha justificado o seu grotesco ataque àquele técnico do FAOJ.
Ocorrem-me estes pensamentos enquanto viajo, saltitando, entre as páginas da “ Tirania da Comunicação” de Ignácio Raimonet , e as de uma outra edição, “A Verdade e a Política” de Hannah Arendt , arrancada aos saldos da última Feira do Livro.
De quando em quando levanto os olhos dos livros e cruzo-me com o mundo. Não escondo que a guerra do Kosovo, e o papel que os jornalistas nela tiveram, me absorve muito do meu olhar. Mas não só. Também, noutro plano, a guerra entre o teatro e as suas testemunhas, quer sejam os jornalistas, quer sejam os críticos. Ou a guerra do Procurador da República com o ex-Director da Polícia Judiciária. Um conjunto de situações que vou, sempre que posso, discutindo com alguns amigos que fazem do jornalismo um modo de estar entre nós.
E no centro desse debate está de facto o duplo constrangimento que decorre do desmesurado poder que ainda hoje atribuímos a um ofício que se sente ele próprio, na sua dimensão mais artesanal, a do trabalho dos jornalistas, cada vez mais encurralado contra a sua impotência diante do mercado das notícias.
Ignácio Raimonet tem aliás uma visão demolidora sobre o efeito que o mercado produz na relação do jornalismo com a verdade. Quando analisa a forma como, nos casos de Diana Spencer e de Mónica/ Clinton, muitos meios de comunicação social não hesitaram em, com a mesma desenvoltura, vender tanto as falsas notícias como os seus posteriores desmentidos, lucrando igualmente com as duas situações.
E isto porque no mercado das notícias aquilo a que chamamos verdade, tem o mesmo valor daquilo a que chamamos mentira. São ambos elementos do espectáculo de ficção e entretenimento destinado ao espectador encaixotado magicamente no seu suicídio de mundo .
Esta brusca mutação na relação que mantínhamos com o jornalismo, que deixou gradualmente de estar tão vinculado à formação de uma melhor opinião e consciência e passou a ser também marcado por um consumo desabrido de um produto a que designamos por news (que desde que seja novo e mantenha uma continuidade narrativa com o enredo do mundo pode ser verdade ou mentira) tem também de ter consequências muito grandes no trabalho jornalístico.
Assim, ele deixará de ser cada vez mais uma argumentação coerciva do mundo, como o é todo o discurso que pretende repor a verdade, e tenderá a ser um investimento num olhar testemunhal, humilde perante a monumentalidade do real. Olhar que terá de saber conviver também - como se estivesse numa prateleira de um supermercado - com uma ficção que, desenfreada, tenta responder às leis da oferta e da procura.
Na verdade liberto de uma presunção - e sabemo-lo, arrogância - de verdade, aquilo que o distinguirá será o seu processo de fabricação, o seu certificado de garantia. De um lado estarão quer os enlatados noticiosos difundidos à escala planetária e refeitos em cada redacção para serem apresentados pelas grandes vedetas do espectáculo da informação, desse mesmo lado estarão também os grandes repórteres nas salas de imprensa dos múltiplos palcos onde é apresentada a estratégia do mundo, do outro estarão os jornalistas, aqueles que - independentemente do suporte com que nos devolvem o real - estão lá para, simplesmente serem testemunhas qualificadas dos acontecimentos.
A anunciada morte do jornalismo não é mais do que o seu renascimento, a sua caminhada para uma clarificação de papéis. Muitas vezes não compreendi como bastantes jornalistas humildes, honestos e conscenciosos que encontrei na SIC, conseguiam conviver com o comércio mais frenético e estonteante da estação.
Hoje compreendo-os melhor. E é até por eles terem insistido numa verdade profissional que acaba por marcar as fronteiras com o espectáculo mediático que hoje nos é possível perceber que o comércio das news, por mais jornalistas que arraste, acabará por levar, involuntariamente, a um rejuvenescimento do trabalho jornalístico.
Tomando como ponto de partida a guerra do Kosovo, o maior problema não será o facto do espectador encaixotado no seu suicídio de mundo ter ao seu serviço um batalhão de vedetas, de repórteres arrogantes e completamente absorvidos pela nova máxima do mercado jornalístico “ da verdade dos factos também se faz notícia” .
A catástrofe só descerá à terra das notícias quando aqueles que se tentam informar porque sabem - como Hannah Arendt - que a “liberdade de opinião é uma farsa se a informação sobre os factos não estiver garantida e se não forem os próprios factos o objecto do debate”, não puderem confiar ou dispor do olhar testemunhal de repórteres como Cândida Pinto, Aurélio Faria, Pedro Rosa Mendes, Paulo Moura , Pedro Caldeira Rodrigues, Carlos Santos Pereira, e outros (situo-me apenas no universo do trabalho feito sobre a guerra no Kosovo pelos jornalistas portugueses).
Entre a catástrofe e a frenética mistificação dos média, vive uma realidade difícil, ambígua, que também se alimenta de desistências várias. Não só aqueles que naturalmente escolhem ser a face do negócio, também aqueles que deixam de acreditar na profissão e se arrastam pelo mal estar de não conseguirem corresponder à necessidade que temos que eles se mantenham lúcidos, confiantes e de olhos abertos perante um real com que, através deles, marcámos encontro.
E entre uns e outros erguem-se as mãos verdadeiras que Paul Celan responsabilizava como as únicas autoras de poemas verdadeiros, ideia que um dia Abel Neves, dramaturgo, usou para defender que “ este trabalho de ter ou manter mãos verdadeiras é, por si só, uma caminhada na vida “.
Nos poemas, nas news, na vida.
(1) Titulo de um texto da Crónica Olho da Rua que assinei há muitos anos no Jornal Vento Novo e que recuperei agora ao fazer a limpeza de ficheiros.

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