terça-feira, maio 03, 2011

Para que precisamos nós da Cultura?

Tenho alguma dificuldade em escrever de uma forma credível, até para mim mesmo. Sinto-me mal. Apetecia-me ficar de quarentena. Desfazer-me de uma data de conceitos que a praça pública anda a vociferar e que eu não entendo. Porque é que eu hei-de andar aqui a repetir ideias que me vêm de todo o lado e em que eu pego, como se fosse um puzzle, dando alguma razoabilidade porque as enfio na minha retórica discursiva? Como se soubesse do que estou a falar! Não sei. Dívida soberana. Ataques especulativos. Neoliberalismo. Restruturação da dívida. Resgate da nossa dívida. Dinasia PEC. Europa. Agência de Notação. Níveis de Ratting. Default. Ordenados milionários dos CEOS. Lucros fabulosos dos especuladores. F.M.I. (mas posso falar-vos até à exaustão de uma relação apaixonada com F.M.I. do Zé Mário Branco). Não percebo nada disto. E não estou para mandar uns bitaites a fazer que percebo. Não percebo e ando mal informado e salvo raras excepções de alguns amigos que andam por aqui a fazer autêntico serviço público vejo que rende muito mais, tanto na bloga como no facebook, fazer rolar ideias, mesmo que de contrabando. É por isso que ano aqui há dias para escrever um texto e não acredito em nada do que escrevo. Porque aquilo sobre o que se escreve, sobre o que se pensa, sobre o que anda por aí, sobre o que forma opinião, para mim é trampa. Lixo, lixo ideológico. Há um ruído ensurdecedor na cidade dos vivos.
1. Há qualquer coisa dentro de mim que me diz que é pela cultura que conseguiremos desmontar o torniquete. Porque é de um torniquete que estamos a falar. E por isso aquilo que tinha começado a escrever sobre a necessidade da esquerda, já não me entusiasma muito.
Nos meus últimos três textos dramáticos inseri sempre uma personagem que falava de uma guerra que aí vem. E no próximo, aquele que escrevo para um novo projecto, a guerra vai mesmo começar. E isto não é por ter descoberto agora alguma tendência apocalíptica. Sim porque realizei, radicalmente, que deixarmos entrar a ideia de guerra no nosso mundo, é começarmos por assumir que a nossa ideia de paz, de prosperidade (e estou a falar sempre e em primeiro lugar desta Europa onde me situo) está vinculada à miséria, exploração e morte. A uma geopolítica tenebrosa. Desde a primeira era Reagan, passando pela dinastia Bush, não isentando a fase final de Clinton, que comecei a perceber que não tinha alternativa pessoal a essa visão política. Não era negociável nem provinha de uma visão extremista radical assente em algum calhamaço ideológico. Era a natural assumpção de que não via nenhuma diferença entre a minha vida e a de qualquer outra pessoa que habite este nosso mundo. E também que a globalização política nos responsabiliza, a cada um, seja lá onde nos encontremos, pelo que se passa em qualquer ponto do mundo. Estamos em guerra.
Não há assim nenhum sitio neste mundo onde eu me possa proteger da responsabilidade que sinto pela verdadeira catástrofe que a voracidade tentacular do nosso bem-estar provoca em todo o globo. Contra esta ideia de que a guerra é sempre lá longe, senti a necessidade de - metaforicamente, como o é sempre a expressão artística - a aproximar das nossas casas. É por isso também que, com alguma provocação, vou alertando que quando estamos a falar de números de pobres, de números crescentes da fome, não estamos a falar dos que não têm o mínimo para viver com dignidade, não estamos a falar dos que não têm que comer (porque verdadeiramente os números do desemprego só nos preocupam quando sobem a níveis que fazem temer que eles comecem a entrar nas nossas famílias). Estamos a dizer que começámos a perceber que a fome e a miséria estão a chegar à rua de baixo e que logo, logo, estarão na nossa própria rua. Nós estamos apenas preocupados com a nossa fome e com a nossa pobreza. Ou estamos a pensar nas hordas de pobres que vão começar a desestabilizar este nosso mundinho. O tipo do Pingo Doce está. É aliás impressionante como toda a gente o ouve como se ele fosse um papa. E estamos apenas preocupados connosco porque nos condicionámos assim, a um egoísmo de base. Costumamos amiúde compararmos-nos aos ratinhos de Pavlov. Mas a única verdade que podemos apresentar uns diante dos outros é a de que a metáfora pavloniana é insuficiente para explicar uma coisa: nós somos simultâneamente os cientistas e os ratos no laboratório. Todas as retóricas políticas que o pretendam esquecer estão a fugir da cultura como o diabo foge da cruz.
Não há nenhum princípio romântico sobre a esquerda, não há nenhuma urgência de natureza pragmático-realista que nos deva deixar de cuidar da ideia de que a dimensão colectiva da Cultura é o chão fértil onde vivifica uma política que possa devolvermo-nos a ideia de responsabilidade. Por mais que ela pareça coisa vaga e desmobilizadora para quem está muito preocupado com os resultados expressos.
2. Quando falamos em cultura, e principalmente se um dramaturgo fala de cultura, pensamos logo que se está a falar no plano da manifestação dos objectos artísticos e dos produtos culturais. É uma forma de reduzirmos o debate para um plano onde ele pode ser manipulado pelas diferentes discursividades políticas, quer de esquerda, quer de direita, mas não é disso que se trata. A cultura é tudo aquilo que é a expressão da nossa vida. E não há nada do que fazemos, ou não fazemos, que não seja expressão de nós e, enquanto expressão de nós, cultura.
E é dessa ideia muito vasta de cultura que me socorro quando me refiro à perspectiva de que é pela dimensão cultural que a política pode devolver-nos a ideia de responsabilidade. É um trabalho sobre a identidade, a forma como nos constituímos uns diante dos outros.

[Aparte ou pausa para respirar: Poderíamos também falar aqui da especificidade da relação portuguesa com a cultura . E aí teríamos oportunidade para falarmos de uma certa bicefalia que domina as políticas governamentais ligadas à cultura, fazendo um tratado de Tordesilhas entre aquilo que podíamos referir como alta cultura (os produtos culturais e os objectos artísticos realizados por agentes culturais devidamente licenciados, mapeados e legitimados, das quais se encarrega o Ministério da Cultura através dos seus diferentes organismos) e a baixa cultura (as actividades amadoras e de expressão popular, o associativismo, em grande parte confinadas à investigação científica e à academia, à INATEL, às autarquias e às cooperativas). ]

3. Movimentos de cidadania. Desde que a ameaça de bancarrota começou a pairar sobre as nossas cabeças, houve um movimento de cidadania muito importante. Não o vemos muito bem reflectido na sociedade até porque o seu eco é muito filtrado, parece que os comentadores são os mesmos, parece que os protagonistas reverberam as mesmas coisas, parece que o tempo se aproxima velozmente do dia 5 de Junho sem nada trazer de novo, mas não é bem assim. O extremismo da situação fez com se criasse um circulo de atenção sobre novas camadas discursivas veiculadas pelos meios de comunicação mais informais. Passa-se mais tempo na internet, nos blogues, no facebook. E o tempo, o nosso tempo, o tempo que cada um de nós deposita no tempo que é de todos, é cultura. Fazem-se circular mensagens, textos, vídeos. Muitos dele são como que uma catárse. Andamos desesperadamente à procura de bodes expiatórios. Encontramos por isso alguns culpados, tanto externos como internos. Internamente, e no plano político partidário, Sócrates para todos, a direita neoliberal e a esquerda radical para o PS, o PS, o PSD e o CDS para o BE e para o PCP. Fora do mundo dos partidos os culpados são os bancos, a corrupção, a falta de ética na vida pública, o Estado Social, a Função Pública, o descontrolo do investimento público, a dívida pública, a dívida soberana. Externamente a deriva neoliberal financista, onde se juntam as agências de notação, os especuladores e uma desregulação da economia. O FMI que surge muitas vezes associado a esta deriva neoliberal, aparece agora também como parceiro do BCE e da CE. E se estes são os culpados, as grandes vitimas são, para a direita, o rendimento das pessoas e das famílias, o desenvolvimento económico do país, a sua soberania, para a esquerda, o rendimento das pessoas e das famílias, o desenvolvimento económico do país, a sua soberania, e o Estado Social.
4. Remar em círculo. O facto de estarmos mais ligados uns aos outros dramatiza este remar em circulo dos nossos últimos tempos. Estamos tão presos a este enquadramento político que parece irreal esboçar algum movimento no sentido de promover uma reflexão sobre as possibilidades de agirmos de uma outra forma do que aquela a que nos vimos condicionando. A troika está cá a passar a pente fino a nossa vida. Para a direita, por mais bem intencionada que esta esteja - e talvez fosse uma altura de atribuirmos à direita a mesma sinceridade política que conferimos à esquerda - é o tempo de tirar partido da situação de modo a fazer passar um conjunto de transformações que seria impensável conseguir promover num quadro político e económico de alguma estabilidade. A esquerda, dividida entre o PS, o PCP e o BE, está em estado de afonia. Ou agonia. Dos partidos de esquerda o PS é o único que assume falar com a troika, o PCP e o BE, como todos sabem, excluíram-se do processo. A exclusão do PCP e do BE mesmo se para muitos parece incompreensível, já que eles fazem parte de um quadro institucional e foi o País que pediu o resgate, não deve ser dramatizada. Se a troika fizer convenientemente o seu trabalho terá, sem dúvida alguma, oportunidade para conhecer a posição destes dois partidos. O que de mais negativo poderemos fazer agora é criar tensões a partir de diferentes interpretações sobre actuações legítimas dos partidos. Se não é por aí que nos entendemos que não seja também por aí que nos desentendemos.

5. A agenda da direita. No entanto mesmo não nos deitando a criticar as atitudes, temos de tentar perceber o que é que podemos fazer. A agenda da direita parece mais ou menos clara e ela está entusiasmada com isso. Muitas vezes incorremos no erro, e eu faço mea culpa disso, dizendo que a esquerda se aliou à direita para derrotar o PEC IV e, consequentemente, o governo. A tirada tem alguma bondade como provocação mas não é exacta e não nos ajuda a perceber as circunstâncias do que se passou. A dinastia PEC foi uma criação do Governo PS com o PSD, assente num entendimento comum e sempre teve a rejeição do PCP e do BE. Ou seja, quem rompeu com a dinastia PEC foi, assumidamente Passos Coelho. Fê-lo da forma atabalhoada que todos sabemos, faltando à verdade, truncando versões, dizendo aqui uma coisa, em Bruxelas outra, mas foi ele que o fez. Foi ele que se aliou a uma esquerda que estava naturalmente contra a dinastia PEC e hoje percebe-se porquê: não só a agenda do PSD está sintonizada com as exigências do pensamento neoliberal que dominam a estratégia de resgate, como vê nisto uma excelente ocasião para uma vingança sobre mais de uma década de governação do partido socialista. Se o Orçamento de Estado de Durão e Portas era uma santuário ideológico contra a esquerda e o PS, esperem pelo que virá se Passos Coelho for o redactor-chefe do próximo OGE. É claro que a direita sofre da mesma contingência humana que também caracteriza a esquerda: ela não vê isto da mesma maneira que a esquerda o vê e por isso substitui sentimentos negativos como vingança por outros bem mais elevados. E por isso ela não pode perceber aquilo que o Daniel Oliveira disse uma vez no Eixo do Mal e que nos devia servir de baliza: o que se está a passar é um autêntico golpe de estado à governação legítima dos países, impondo medidas que consubstanciam mudanças de regime que nenhum partido se atreve a colocar nos seus programas eleitorais e deveremos perguntar-nos se achamos isto aceitável.

6. E a agenda da esquerda? Qual é a agenda da esquerda, perguntam-se as diferentes tribos deprimidas de esquerda? É difícil perceber qual é e isso provoca notórios embaraços. Tenho encontrado nestes dias muitas pessoas, do PCP, do BE e do PS que estão muito relutantes em votar. Não estão indecisas, sabem que se votarem vão votar no partido onde costumam votar sempre, o apelo do voto útil é sempre algo disponível para um eleitor, mas têm uma genuína relutância em votar. Eu próprio estou nesse grupo. Não tenho dúvidas em dizer que neste momento nenhum partido de esquerda me dá sinais claros de querer governar à esquerda e por isso qualquer voto na esquerda será reforçar a votação na direita. É claro que também poderia adoptar aquela atitude lúdica do eleitor do PCP que zangado com o seu partido vai votar no BE ou no PS, ou o do BE que de costas voltadas para a sua força política promete deitar a sua escolha no PCP ou no PS, e como votante que fui do PS colocar o meu voto no BE ou no PCP. Corre por aí, nesta perspectiva lúdica, que não votar é fazer o jogo da direita. É um argumento estafadissimo que nem chega a partir. O que nos deveria preocupar não é a esquerda que faz o jogo da direita, é a esquerda que não faz o jogo da esquerda. A menos que o jogo da esquerda não seja governar, seja só o ser oposição. E não há dúvida de que a bancada esquerda fora do chamado arco da governação faz excelente oposição. Tenho aliás muitos amigos de esquerda que justificam o seu voto no BE e no PCP porque trabalham muito na Assembleia. Fazem muitos trabalhos de casa. Talvez seja uma perspectiva salutar esta e talvez fosse sensato enterrar aquele arquétipo político de que deveremos ter uma ideia de bom governo pra podermos ser uma boa oposição. No entanto, bom senso à parte, o que faz falta neste momento é a capacidade de comunicarmos com clareza.

7. Falar claro e falar verdade. Uma das grandes falácias actuais é a da necessidade de falar claro e verdade. Todos o repetem, em todas as praças públicas deste país. É razoável este ponto de vista. O paradigma Medina Carreira, ou seja, de que vivemos na mentira e que agora temos de falar a verdade ocupa a agenda de todos os dias. No entanto pondera-se pouco a possibilidade de que este apelo à clareza se situar numa zona de duplo contrangimento que só nos perpetua neste lodaçal discursivo que desvaloriza tudo o que se diz. De que é que adianta falar claro se não existem as condições necessárias para que o acto de comunicação se processe com clareza? Nós ouvimos aqueles muitos que falaram claro ao longo destes anos, que nos alertaram para o estado de degradação das nossas finanças, para o elevado endividamento público e privado? Nós ouvimos aqueles que nos alertaram para o perigo que rodeava a função social do Estado? Nós ouvimos aqueles que escreveram, alertando para a forma como a Europa crescia sem solidariedade? E porque é que não os ouvimos? Porque não nos interessava. E porque é que não nos interessava, porque é que não nos era interessante? E o que é que nos foi interessante, o que é que nos interessou, o que é que nos prendeu a atenção? Se não formos capazes de questionar isto o apelo a falar claro é só mais uma metamorfose de um discurso escorregadio e pantanoso.

Por outro lado o apelo a falar verdade é ainda mais perigoso e anda na senda de um certo sebastianismo que se está a instalar troicamente na sociedade portuguesa. Como se entre a gente humana houvesse uma verdade revelada. Há pessoas mais lúcidas do que outras, claro que há. Mas de nada nos serve isso se enquanto comunidade não construirmos uma evidência comum sobre uma determinada realidade. A nossa verdade é aquilo que entre nós estamos decididos a aceitar como verdadeiro. As verdades reveladas são manhosas, trapaceiras e enganadoras. E aqui estamos de novo a bater à porta da cultura, agora pelo postigo da forma como comunicamos.

8. O que é isto de condições necessárias para a clareza na comunicação? Mas nós não vivemos na sociedade da comunicação?! Do conhecimento? Em primeiro lugar é preciso reconhecer que a perspectiva local tem vindo a perder relevância na nossa relação com a cultura. Esse é um aspecto para tentarmos perceber que a clareza do acto da comunicação não tem tanto a ver com a clareza do que se diz ou do que se entende, mas de como é que hoje em dia isto produz sentido. O nosso modo de vida está dominado pelo fenómeno da globalização. A revolução tecnológica tornou a terra um lugar muito mais pequenino, muito mais interactivo e, paradoxalmente, muito mais distante do local. Perdemos em territorialidadade o que ganhámos em virtualidade. São relações diferentes, não necessariamente antagónicas, existem cada vez mais experiências de cruzamento destas duas experiências, mas são relações diferentes. O local exige tempo, o tempo da interacção no aqui e no agora, tempo que a rede global maximaliza unindo tudo. Este admirável mundo novo que é vivido no plano dos sujeitos, quer do ponto de vista individual quer colectivo, como um lugar libertário, onde cada um adquire a possibilidade de se expressar, de conviver, de se agregar, é também um lugar panóptico onde é muito mais fácil exercer, de forma subrepticia, disfarçada, a dominação, ou se quisermos, de uma forma mais benigna, o controle social e ideológico.

A grande eficácia do sistema de dominação actual é que ele prescinde do binómio dominador-dominado para exercer o jogo da dominação. A palavra é apropriada. Trata-se de um jogo. O dominador é tão espectral como o gesto de dominação e o próprio dominado e não coincidem necessariamente. Há um vaivém. Quando hoje vemos alguns vídeos que circulam no you tube ( e em relação a muitos nós não sabemos verdadeiramente quem os fez nem quem está por detrás desses mesmos objectos) ou quando vemos o trabalho desmistificador do Inside Jobs, nós percebemos que aquilo que supunhamos ser a nossa força, a união, é também afinal a nossa grande vulnerabilidade.

Os nossos países, que ainda há pouco tempo tinham uma rede institucional complexa para implementar a sua soberania (língua, simbolos, instituições, território, moeda, fronteiras, águas territoriais, cultura), hoje, de verdadeiramento soberano, só têm a dívida. Temos uma grande vulnerabilidade. Basta condicionar um director do BCE, basta calar um presidente de um Comunidade Europeia, para que de repente o papão FMI, com um director de esquerda, surja de forma dócil a propôr taxas de juro e prazos de pagamento mais generosos do que os defendidos pelas instituições da União Europeia. Por outro lado também temos milhões de pessoas ligadas por partículas discursivas minimalistas (os likes, os shares, os comments) fornecendo uma ilusão de individualidade e de coesão àquilo que, visto com um bocado de distância, se torna também numa massa enorme de acriticismo. E tudo isto parece por vezes ter a força de um tsunami que nada nem ninguém consegue controlar. Ou pelo menos, não nos é perceptível o controle, até porque estamos muito mais deslumbrados com a força telúrica dos fenómenos (como a aventura da rua árabe).

9. Porque é que precisamos nós da cultura? Há muitas razões e não vou maçar-vos com aspectos gerais da teoria da cultura. O que me parece é que tentamos ver tudo no plano da mudança de paradigma da política quando o deveremos situar num trabalho profundo sobre a nossa identidade. É que se não podemos sentar um país inteiro no divã do psicanalista, precisamos de perceber que não adianta querermos outros políticos, outras políticas, se não assumirmos que temos de mudar, porque foi este modelo de comportamento que nos trouxe a este aparente beco sem saída. Atravessamos um grave problema de congruência política porque estamos a pedir aos nossos políticos que sejam os protagonistas de uma mudança que nos tem de envolver a nós. Alguns de nós viram-no, vêm-no, nas manifestações que ocorreram um pouco por todo o país. É como se estivéssemos muito perto de não termos de aceitar como uma inevitabilidade o afundamento da nossa vida democrática por causa do apodrecimento da partidarização da sociedade. Estamos muito próximos mas ao mesmo tempo sentimos que podemos morrer na praia. 5 de Junho parece a data da capitulação onde todos nós teremos de fazer um regime alimentar à base de sapos, mas talvez seja bom não fazer da nossa vida favas contadas. Há 37 anos de uma noite para o dia mudámos toda a nossa história e com que consequências?

Hoje talvez muitos de nós comecem a perceber que estamos a pagar um preço demasiado elevado por termos esvaziado aquilo a que chamamos a opinião pública de toda a diversidade cultural, religiosa, espiritual. Quando retrospectivamente olhamos no aniversário de mais um 25 de Abril um documentário sobre José Afonso, percebemos que há uma dimensão da nossa vida que se perdeu. Há trinta e sete anos não deixaríamos que tantos oráculos medíocres viessem começar uma frase por o que as pessoas querem, o que as pessoas precisam, o que as pessoas gostam. O que faz as pessoas felizes. E perdeu-se porque a perdemos. Ninguém nos roubou. Ou através da cultura valorizamos a nossa responsabilidade ou continuamos neste discurso de negação política que atinge zonas de delírio em que de um extremo resolvemos os problemas com impostos sobre as grandes fortunas e do outro extremo colocamos a solidariedade social no plano da caridade.

Ando a escrever o mesmo há alguns meses: esta crise só é má para quem acha que viviamos bem. Para aqueles que achavam que viviamos mal, que a nossa vida estava presa a valores identitários que nos enfraqueciam, o momento que atravessamos é uma oportunidade. É isso que nos diz a cultura. Ela diz-nos: não aceites inevitáveis, tu podes ser dono da tua vida. A vida pode ser diferente. A vida pode até ser nossa. E não há mal nenhum em que isto seja apenas uma utopia. Mas atenção: esta crise é um momento dramático em que não podemos baixar os braços, desistir. Não podemos desistir de pensar, de dizer. E não podemos de deixar de passar entre nós aquilo que pensamos. Meso que nos custe tanto pensar. Porque achamos que é tudo remar em seco e em círculo. O que a cultura nos diz é que o momento da transformação é uma festa. E se ao lermos isto pensamos o quanto de absurdo e irrealista é alguém escrever que o momento de transformação é uma festa, antes de abjurarmos este lirismo pacóvio talvez seja melhor irmos ao espelho vermos se ainda somos nós do outro lado.

10. Vivemos acima das nossas posses, dizem. É mentira, é uma grosseira mentira. Que como dizia o Aleixo, tem uma dose de verdade para nos ludribriar melhor. O que se passou é que esta desregulação do sistema financeiro já não se podia contentar com o dízimo resultante das nossas disponibilidades de consumo que sobravam do nosso rendimento mensal. E isto não se passou só em Portugal. É um fenómeno global. Provavelmente a especificidade portuguesa traduziu-se no modo como nós, que andamos sempre com uma identidade larvar ou às avessas, nos deixámos seduzir tanto pela dimensão apoteótica do nosso consumo. Depois de décadas a acumular poupança, em que o salazar ficou como marca do instrumento de rapar o tacho, aderimos com um espantoso novo riquismo a esta possibilidade infindável que os créditos, que agora sabemos serem hipotecas, nos permitiam. E, através da publicidade, o sistema replicava-se e ajustava-se ideologicamente a essa finalidade. Dizer que as pessoas viveram acima das posses é tentar apagar a realidade de que o sistema permitiu que a actividade económica, suportada numa alavanca financeira histericamente crente nas suas potencialidades, ganhasse acima das suas possibilidades, tendo em conta o equilibrio do sistema. Mas nós também estivémos lá. Os milhões de lucros são milhões de cêntimos nossos. E somos nós que os demos. Senão compreendermos isso nunca podermos mudar o nosso comportamento. E estamos sempre nas mãos de quem nos vem aterrorizar.

11. Alternativa. Quando eu insisto nesta ideia de que temos de analisar a realidade como se ela não fosse de sentido único, geralmente dizem-me, está bem, mas qual é a alternativa? Ou seja, se criticamos o resgate do BCE, do FMI e da CE, perguntam-nos qual é a alternativa e supõe-se que a alternativa é o não ao resgate. Este é um modo de pensar tão inculcado e tão impregnado de uma ideologia dialética que se torna dificil explicar que enquanto não assumirmos que estamos a colocar o problema de uma forma errada, as soluções serão também ela erróneas. A alternativa ao resgate que está a ser anunciado pode ser um resgate em condições mais vantajosas para todos. Ora para isso não é preciso termos uma alternativa, sim não aceitarmos que para uma determinada realidade não lhe há alternativa.

É uma operação tão simples que chega a ser tenebrosa a forma como o discurso político, o que rola por aí, o faz esquecer. Há uma situação de efectiva falta de liquidez da nossa economia. Não temos dinheiro. Até eu que sou o mais incapaz de todos para perceber os fenómenos económicos já o interiorizei. Temos de o pedir emprestado ou temos de mudar a curto prazo a estrutura da nossa angariação de receita e de realização de despesa. A tónica da diabolização de quem pode emprestar dinheiro faz parte de uma retórica discursiva que puxa pela lógica dos afectos mas é muito pouco interessante porque na política a dimensão dos afectos não é uma realidade partilhável senão por aqueles que pensam do mesmo modo .

12. O resgate. O que é importante é perceber que se por um lado precisamos de dinheiro, as modalidades de resgate têm produzido um efeito dominó com a Grécia e com a Irlanda e que se vamos negociar um resgate partindo dos mesmos pressupostos a probalidade é que o empréstimo não nos sirva para nos ajudar a desenvolver sim para nos atascarmos no mundo tenebroso da dívida. Isso não quer dizer que não devamos assumir o resgate, quer apenas dizer que se o assumirmos devemos salvaguardar todas as situações que nos sejam prejudiciais. É para isso que precisamos de coesão nacional, é para podermos ser mais fortes, tanto interna como externamente. Os partidos que são contra o resgate têm proposto outras alternativas de financiamento. Por mais que algumas delas sejam nitidamente demagógicas, outras há que são realistas e que são possíveis de compatibilizar com o empréstimo, diminuindo até o seu impacto.

Esta ideia de que a nossa vida está entre a aceitação da inevitabilidade do resgate ou a da negação da necessidade do mesmo, faz-nos perceber que tanto o resgate como a sua negação podem ter alternativas. É que o que se está a fazer passar é que a inevitabilidade de um resgate, é a inevitabilidade de um certo tipo de resgate e isso é intolerável. Mas é nesse intolerável que tem andado muito da nossa política e muito da campanha mediática. O que eu gostava de ver era os políticos do meu país, e principalmente os de esquerda, a trabalharem em conjunto para que, se o resgate se fizer, seja o menos nocivo para o país e que seja feito para o desenvolvimento do país. Deveríamos nas próprias eleições responsabilizar seriamente os políticos e as políticas que não perceberem isso.

13. O não-resgate.

A posição do BE e do PCP sobre o resgate tem desde logo uma virtude: obriga-nos a perceber que estamos a discutir a Europa e que temos de definir em que Europa é que queremos estar. A grande vantagem desta obrigação de discutirmos a Europa é a de percebermos que esta ideia de Europa que por aí anda nada tem de utópico. É até anti-europeísta. Não é por acaso que muitos de nós andam entusiasmados com a experiência da Islândia. Parece um David contra Golias e quem não gosta de David? Só que a Islândia não faz parte da Comunidade Europeia e por isso tem outra autonomia. É isso que nós queremos? Sair da Comunidade Europeia? Se formos analisar os partidos à esquerda do PS, o BE assume a sua vocação europeísta, o PCP não. Estive a ler atentamente as propostas de todos os partidos de esquerda e percebi que por muito que haja medidas que se aproximam entre o BE e o PCP pode haver uma Europa que os divide. O PCP não prescinde da sua acusação de que a adesão ao Euro desregulou e destruiu a actividade económica. Ou seja, o não ao resgate pelo BCE, pela CE e pelo FMI, parece que é uma alternativa, mas que alternativa queremos? Com Europa? Sem Europa?

De qualquer forma o ou isto ou aquilo é uma brincadeira de rapazes de raparigas no pátio, não uma posição de compromisso num momento como este e nós, enquanto cidadãos, temos de mostrar de uma forma cabal o que é que fazemos a políticos que pretendem brincar ao nosso futuro em vez de se entregarem a um compromisso. O BE e o PCP apresentaram propostas para o não resgate cuja validade não se esgota se o resgate for feito. É claro que o tempo passa e não se percebe como é que as medidas destes dois partidos podem ser adoptadas se não forem, em tempo recorde, analisadas e quantificadas. Nesse sentido acho muito importante a iniciativa do BE de pedir ao Governo para ser ouvido porque tem propostas para apresentar. Regra geral as propostas do BE parecem, a um não especialista em economia, boas e de acordo com a necessidade do País. Espero muito sinceramente do Partido Socialista que se entretenha seriamente ou a explicar porque são inviáveis, porque é que não podem ser integradas na negociação com o BE, CE e FMI, ou a viabilizá-las. E o mesmo às do PCP. O facto de elas serem apresentadas por um partido que é contra o resgate não quer dizer que elas não possam ser aproveitadas para minimizar os efeitos negativos do empréstimo. E não quer dizer que não possam ser aplicadas depois.

14. Nós os cidadãos de esquerda, alinhados ou desalinhados, devemos bater-nos para que os partidos de esquerda consigam encontrar soluções que salvaguardem um património de políticas sociais que está intimamente ligado à nossa democracia. Não aceitando desculpas infantis. Quem já aceitou integrar uma coligação com a direita no derruba do governo ou quem se apresta a coligar-se com ela depois das eleições, não tem desculpa nenhuma para não fazer um grande esforço político na criação de mínimos denominadores comuns de entendimentos políticos. Devemos bater-nos para que a Europa consiga ver em nós a Europa e não apenas um país com problemas de dívida soberana. Deveremos bater-nos ou para encontrar soluções menos gravosas do que o empréstimo financeiro ou que ele, a ser contraído, seja para resgatar o País e a sua economia e não para a manter num jogo fraudulento e especulativo. Deveremos bater-nos para que a coesão política do País seja um aumento da responsabilização social e politica de todos. O país não é um ringue de pugilato político entre José Sócrates e Passos Coelho. Temos de acreditar na vida, na nossa vida, na nossa capacidade de a transformarmos. Mesmo que não percebamos nada de ratings, de renegociações da dívida, de créditos defaults, e outros truques com que pretendem armadilhar a nossa possibilidade de analisarmos o bom ou o mau senso dos nossos políticos.

5 comentários:

Graza disse...

É preciso coragem para deixar num blog um texto desta dimensão, pelo risco que se corre de que os visitantes saiam antes de começar, mas talvez seja altura de assumirmos esse risco, porque nem tudo se consegue dizer no formato sintético em que achamos que os blogues funcionam. Se todos tiverem a consciência de que o estão a fazer com esta qualidade, estarão certamente a dar um grande contributo para exorcizarmos o momento que vivemos. Parabéns por isto JP. Vou tentar trazer leitores.

JPN disse...

Obrigado, João.

antónio m p disse...

Não são ratos, são cães, amigo; cães que salivam.

cereja disse...

Meu caro, de blog em blog cheguei aqui ao seu e encontrei este texto excelente. Partilhei-o no facebook.
É claro que o texto é muito grande, difícil de ler de uma vez. Acabei por o passar para word para maior comodidade de leitura, e foram 12 páginas!!!
Concordo com muito, muitíssimo do que diz. Não com tudo, mas no essencial. Para além do facebook enviei este texto a vários amigos porque provoca reflexão sobre temas muito importantes.
Parabéns.

JPN disse...

Obrigado Pé de Cereja. É por este movimento imprevísivel de alguém que chega e depois se dispôe a passar um texto para word e a ditribui-lo entre amigos qu é tão gratificante esta aventura de escrever aqui.