O gira-discos entrou em nossa casa poucos anos depois de termos chegado a Lisboa. Foi um dia cerimonioso, o de o desembrulhar. Ainda me lembro. Tinha um suporte para ir fazendo descair os discos, até um limite de sete. Os meus pais dançaram ao som de um disco de Mantovani, uma colectânea que vinha de oferta. Quase logo a seguir veio um disco que se tornou uma companhia nas minhas tardes: Amália, ao vivo, no Café do Luso. Não sei, hoje, à distância do tempo, o que a minha adolescência, e toda a minha vida depois, teria ganho se tivesse trocado essas tardes imensas deitado no chão da sala a apaixonar-me por Amália por alguma coisa mais palpável e menos platónica(anos mais tarde a mesma paixão, mas mais férrea, por Jeanne Moreau) . E não sei não porque não saiba. Se me pensar enquanto personagem há inúmeras variáveis que começam a tornar-se hipóteses e a minha vida poderia ter seguido uma data de coisas. Não sei porque nunca me deitei muito a pensar verdadeiramente nisso. Talvez o fado, tão cedo em mim, me tenha predisposto para me pensar a partir do que me acontece. E se ao pensá-lo assim o fado me surge um pouco como lugar de cativeiro, sempre que olho para Amália, como há pouco tempo no vejo-a como um imenso espaço de liberdade. Aquele ambiente quente, acalorado, meio nebuloso das noites do Café do Luso, que chegava assim à minha sala depois das aulas da manhã, fez-me crescer afectivamente, sensorialmente, emocionalmente.
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