terça-feira, novembro 15, 2011

Cultura: provocação e debate

Há bastantes anos um jornal, num repto a umas declarações de Santos Silva, o ministro da Cultura de então, entrevistava uma série de intelectuais conotados com a Direita e a quem perguntava se a Cultura era de Esquerda. Pacheco Pereira, num célebre artigo, "O que não acontece no acontece", glosava também o tema. E eu, enquanto ia para o debate "A Cultura e a Greve Geral", que o Teatro do Bairro acolheu e dava pontapés nas pedras do caminho, hábito que tenho quando estou irritado ( hoje por causa da "livraria" Pingo Doce) ia cá pensando no título do debate, e a pensar que era bem curiosa a nossa relação com a cultura: achamos que ela é  o que os agentes culturais fazem e ainda mais comummente achamos que é aquilo que os criadores artísticos fazem . E essa produção cultural, e esses artistas - e por uma história que é bem mais complexa do que este post pode pretender contar - são geralmente conotados com os povos e as tribos de esquerda, da mesma forma que a área da economia - por razões bem menos complexas - é geralmente conotada com os povos e tribos de direita. 

Este tipo de maniqueísmo pode ser muito divertido mas distrai a nossa atenção de se concentrar numa coisa bem mais importante: a cultura não sendo o que os produtores culturais e criadores artísticos produzem, é tudo aquilo que as pessoas produzem como resultado da sua relação com os outros, com o mundo, consigo próprias, com os seus tempos livres, com os seus tempos de trabalho. Assim se passamos mais ou menos tempo frente a uma televisão,  nas associações de bairro, nas igrejas, em actividades de grupo ou individuais, nos corredores de um centro comercial, na entrega mais ou menos obcecada a satisfações da ordem do consumo, se vamos pouco ou muito ao teatro, ao cinema, a exposições, aos nossos jardins, passear à beira rio, visitar a família, fazer desporto, na internet, se temos ou não uma relação mais de usufruto através do consumo do que da participação, tudo isso são elementos importantes para definir culturalmente a comunidade onde estamos inseridos, porque todos esses gestos são carregados de cultura. Isso tudo e muito mais, claro.

Essa cultura não se explicita por protocolos claros: quem vai a um centro comercial passar horas a ver uma montra não sente que esteja a produzir cultura, e se na recepção não é claro, também não o é na produção. Sendo tão grande o prazer que as pessoas têm em ver as montras sem comprar nada seria natural que as grandes superfícies usassem esse espaço de mostra para se financiarem cobrando aos que por lá passam sem intenção de comprar. Quem trabalha numa repartição pública e durante oito horas por dia não produz outra coisa visível que não seja a obediência a uma chefia, está a participar culturalmente de uma relação que transcende a relação laboral. Quem trabalha numa empresa privada durante oito horas e se vê confrontado com uma redução de salário por causa de crise e a crise e mais a crise e o raio que o parta, está a participar de uma relação cultural que é maior do que a relação profissional. Essa cultura que não se explicita por protocolos claros ao não necessitar que a comunidade participante se assuma no acto cultural, cria uma espécie de estado de sonambulismo cultural que se traduz por um estado de constante recepção que não sendo marcado por um começo e um fim tem no zapping o seu momento de libertação da tensão receptora. 

E é entre estes dois tipos de produção cultural que estamos: uma, marcada pela relação com objectos caracterizados e claramente definidos no campo cultural feitos por agentes identificados, autorizados para produzir factos e artefactos culturais e que promove uma relação mais ou menos clara de recepção.  Outra, erupção simbólica e criação de imaginários e identidades em catadupa, produzida por espaços onde não é suposto existir uma relação de criação/produção/cultural, como centros comerciais, estádios de futebol, discotecas, bares, televisão, etc. 

Por exemplo, quando se fala que o dinheiro para a cultura desceu mais uma vez com este orçamento, não é totalmente verdade. Desceu para a actividade cultural realizada pelos tais agentes licenciados, identificados e autorizados a produzir cultura. Mas aumentou por exemplo para o Ministério da Administração Interna. Ora como uma das marcas da produção mais recente desta cultura de um certo estado sonâmbulo é o discurso securitário em torno de um anunciado aumento da conflitualidade social, o investimento feito nas forças de segurança pode ser entendido como um investimento cultural. 





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