domingo, abril 08, 2007
Manual de Sobrevivência
É quase sempre assim quando vamos somando decisões adiadas como quem colecciona conchas: quando temos que decidir, protelamos. Algumas protelamo-las conscientemente. Quase como represália pela indiferença que sentimos do outro lado. Isto acontece muitas vezes com coisas públicas que ora se tornam muito urgentes, ora parece que nunca existiram. E vamos assim protelando as coisas, uma a uma. Até que toda a nossa vida inexiste como decisão. Não fazemos a barba, não cortamos o cabelo, não vamos ao cinema, não lemos um livro, não escrevemos um texto, não arrumamos a casa, não organizamos o caixote das fotos. Não telefonamos a um amigo. Em estados mais avançados temos até alguma dificuldade em decidir o que é um amigo ou o que é um mero transeunte. Por vezes, em dias de total desespero entramos no eléctrico e sorrimos para o condutor ou para um passageiro como se ele fosse uma tábua de salvação, a nossa única e maior amizade neste mundo. E logo a seguir somos capazes de responder a um amigo com uma secura e uma dureza como se nunca se tivesse cruzado connosco ou como se ele fosse um vampiro. É dura a vida de um indeciso. Até porque a pressão que o envolve, tensifica-o nessa apoteose do decidir. Parece que a sua vida só voltará a sê-lo se ele decidir. E não devemos esquecê-lo, os quadros de referência que partilhamos em sociedade estão as mais das vezes, completamente virados do avesso. Chamamos decisão àquilo que afinal não é mais do que a pulsão mais mesquinha, mais igualitária e menos favorável á criação de uma identidade. Só que o indeciso não o pode saber. Náufrago da enorme lucidez que é, por momentos ter transviado, transfigura-o a angústia do decidir. É preciso escolher. Devemos por isso encarar com especial candura, no caso dos nossos amantes, familiares, amigos ou vizinhos, e auto-complacência, no caso próprio, o facto de, muito frequentemente, começarmos pelas decisões erradas.
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2 comentários:
Boa tarde, este seu texto fez-me lembrar um amigo, mais velho do que nós que um dia me disse em jeito de balanço "Sabes, na vida passamos o tempo a fazer o que é urgente e deixamos por fazer o que é importante." Se ajudar a relativizar...
Ui, que texto arrepiante na sua crueza, tão corajosa! Os indecisos, na sua "lucidez perigosa" aproximam-se tão perigosamente do caos e da mais radical das solidões... Vou ler várias vezes este Manual de Sobrevivência!
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