sábado, abril 21, 2007

Procurar o silêncio

Há alguma perturbação em sermos vizinhos dos nossos monstros, dos nossos medos, fantasmagorias. Ocupa-se assim o espírito com o que não deve. O nosso corporalma não facilita: nasceu tanto para o desencontro, para o caos, para o nomadismo errante, como para o encontro, para o sedentarismo, para a ordem. Aliás, o nosso lugar na cadeia genética levou-nos ao ponto de sermos capazes de conceber a própria morte do mundo, ou pelo menos do mundo a que com alguma propriedade chamamos nosso, mas ao mesmo tempo não nos damos conta de que tudo isso, todo esse sofisticado arsenal tecnológico, é suportado por um aparato ideológico assente em meia dúzia de mitologias arcaicas, artesanais, que sustentam tanto o homem das cavernas como o cidadão global. E para que a diversidade não nos pudesse desorientar, reduzimos ainda mais o leque das escolhas, a duas ou três mitologias reinantes que organizam os negócios, os afectos, quer dizer, o amor e o ódio que nos permitam sobreviver segundo a lei do mais forte, as racionalidades frágeis e esparsas que ainda sobrevivem a tanta divindade. O mais perturbador deste aparato ideológico que organiza o nosso viver: estas discursividades não surgem para revelar algo de novo à humanidade, elas têm como único trabalho ideológico a anestesia do espírito, libertando-o dessa doença em que se constituiu, nas sociedades humanas, a interpelação, o questionamento, a crítica. São uma falsa história, se assim o quisermos dizer já que suspendem a humanidade no seu desejo de se (des)fazer em sentido. É desse modo que escutar, ouvir, é um dos trabalhos políticos mais necessários à vida quotidiana, e digo que é quotidiana porque é cada dia, um a seguir ao outro, que fazemos a diferença. Há uns anos contaram-me um segredo sobre uma mulher que tinha uma estranha capacidade de ouvir. E nem sei se era uma mulher. A mim, sempre que a olhava, via-a uma estrela, uma estrela que brilha. A mim ensinou-me isso, a partir. Ir em busca do meu silêncio.

1 comentário:

Anónimo disse...

Fazes bem em buscar o teu silêncio. Poderás então depois ouvir os outros, mesmo os seus silêncios. Bom fim-de-semana :)