sábado, maio 05, 2007

E foram muito felizes

Uma vez pediram-me em casamento e eu não resisti. Foram muito felizes esses anos. Os anteriores também tinham sido. E recordo-me, quando me divorciei foi igualmente a utopia da felicidade que me animou o destroçar. A minha vida é, de uma forma genérica, tão pacóvia e ordinária quanto feliz. Não tenho por isso aquela matéria empírica que poderia tornar interessante qualquer coisa que eu dissesse sobre o casamento. Ainda há pouco, ao procurar na wikipédia, descobri uma forma de casamento que desconhecia e o qual tenho praticado com abundância: o nuncupativo, que é realizado oralmente e sem formalidades. Não me entendam mal. Eu gosto dos casamentos formais. Tenho ainda o fraque do meu. Lembro-me da boda, senti-me um príncipe. Ela arranjou raminhos de flores, alfazema, eu caixinhas de cigarrilhas e charutos. Andámos de mesa em mesa, como putativos candidatos a uma felicidade combinada, contratualizada, testemunhada. Depois da festa, a lua de mel. O casamento é um espectáculo, tem as suas luzes próprias, os seus néons, e, vou surpreender novamente, gostei muito que o meu casamento tivesse tido aquele charme ofegante da pequena burguesia. Nunca mais me casarei, sou homem de uma só mulher, mas o cerimonial intenso que aquilo representa ainda hoje me comove. Tornei-me beato com a solidão. Gosto de me levantar cedo nas manhãs de domingo e ir de igreja em igreja, de capela em capela, à procura de casamentos. É um prazer intímo, talvez um pouco perverso, mas gosto de ver um casamento ainda em flor. Sento-me nas pedras da igreja, longe o bastante para poder ter um ângulo de visão suficientemente abrangente de todos os movimentos dos nubentes e imagino-lhes a caminhada, a descida lenta e piedosa aos infernos em que hão-de tornar as suas vidas. Os filhos, as promissórias, as noites em branco, as dívidas, as dúvidas, as raivas, esse enfurecer sem chama, as traições, @s amantes. Tenho um caderninho de capa preta onde aponto os casamentos que não irão vingar. Podem durar um mês, um ano, até uma vida, mas não irão vingar. Num de capa branca assento os casamentos duradouros, que perduram para lá dos seus destroçares. Não sou propriamente uma pessoa normal, igual às outras. Alimento-me do drama humano. O meu caderno branco está quase vazio. Há-de haver, mais cedo ou mais tarde, uma traição. Porque o casamento, na sua alvura, no seu riso, na sua imensa plasticidade, tem em si os germes de uma doença tão grande como o mundo: a mentira, a traição, a dor, a exclusão. Por exemplo, na vida normal, se houvesse vida normal, não lhe chamaríamos traição. Diríamos, actos de vontade. É a vontade que nos coloca aqui. Ou que nos faz ir embora. Mas os casamentos, na sua aparente estabilidade de marfim, na sua excentricidade, são actos que tentam exaurir cada vida da (im) possibilidade de (in) felicidade que ela contém. Eles são actos todos eles para o meu caderninho preto. Mais cedo ou mais tarde. É nisto que gastamos a nossa vida. A dura caminhada. Cada um arranja os seus truques para sobreviver. Os meus de escriba são evidentes e vêm-me da infância, dos tempos das primeiras semanas de aulas. Comprávamos os cadernos para a escola e depois arranjávamos rolos de papel plastificado para forrá-los e protegê-los dos gastos da usura. Era uma segunda capa que acompanhava toda a vida útil das sebentas e cadernos. Faço o mesmo com os meus caderninos onde anoto esta felicidade avulso que encontro por aí em capelas e sacristias, ou até, nas conservatórias do registo civil. O caderno preto está forrado com um papel multi-resistente, branco, de uma brancura radiante, extrema. E o branco, quase vazio, de um papel negro, escuro, que se confunde muitas vezes com a fuligem do inferno. É assim que sobrevivo e que vou chamando felicidade a esta fina retícula de poeira que me cobre o horizonte, enquanto vagabundeio à procura da brisa-beijo.

6 comentários:

Cristina Gomes da Silva disse...

Boa tarde, JPN, bonito este teu texto e sofrido também. Revejo alguns traços de identidade. Sabes, o problema mesmo é a descoincidência entre os "actos de vontade" como tu tão bem lhes chamas`. As rupturas acontecem quando esses actos deixam de ser contemporâneos.

Bons encontros com as brisas e os beijos e bom fim-de-semana

Anónimo disse...

:) maria joão

j disse...

Eu fui tão tolo! Mas um dia caso-me, vais ver! E nesse dia ofereço-te um caderno novo. Azul. Ou verde.

Anónimo disse...

Há 20 anos começámos a namorar (no liceu). Há 17 tivemos uma filha (no inicio da licenciatura). Há 10 comprámos uma casa. Há 5 tivemos o segundo filho. Há 4, numa manhã chuvosa de Dezembro, fomos assinar uns papéis. O "copo de água" foi na Ericeira: eu, ele e os nossos filhos. Sem ilusões, sonhos, expectativas ou alianças. Só porque sim.

Se estivesses à espreita, no notário, em que caderno nos colocarias?

Passámos por momentos negros e por momentos de uma brancura ofuscante.

Cadernos de capa branca parecem-me utópicos... Mas será que temos que ir, todos, parar, fatalmente, aos de capa preta?

Talvez um caderninho de capa cinzenta...

JPN disse...

A pedido, assim a pergunta induz a resposta: é claro que para o caderninho branco. ainda por cima com um juramento abençoado pelo rugir bravo do mar da Ericeira. :)

CCF disse...

:)e uma versão casamento brisa-beijo escrito em caderno arco-íris?! Há que inventar...
~CC~