quarta-feira, maio 02, 2007

A intranquilidade vista do lado da bonança

Há um momento em que estamos intranquilos porque nos entregamos a uma preocupação qualquer. Serve qualquer uma. Na farmácia do bairro duas mulheres mediam a tensão arterial. A primeira, que já deveria andar pelos sessenta anos, obesa como o são regularmente muitos dos portugueses, tinha vinte e quatro-doze. Não tinha um ar intranquilo. Era a sua acompanhante, com pelo menos mais uns dez anos em cima, que explicava ao farmacêutico, não anda a tomar os medicamentos, esquece-se. O esquecimento neste caso poderá ser, se não for uma patologia, sintoma de uma preocupação. O espírito ocupa-se com algo a que dá primazia e depois não pode acudir às tarefas do dia. Olhei-a de alto a baixo. Às mãos, aos pés, sapatos, cabelo branco, papos por baixo dos olhos. E comecei a vesti-los de preocupações várias, todas elas enormes. É um erro de lana caprina dos literatos. Dar grandeza às nossas preocupações. Às vezes são tão pequenas. A segunda mulher tem dezanove-oito. Está preocupada porque a médica lhe substituiu os três comprimidos que tomava por um só. É o remédio que não está a fazer efeito, tenho de lá ir. Ela logo me disse, tome e veja como é e depois venha cá ver se continuamos. Vou lá dizer-lhe que quero voltar aos outros, sentia-me muito bem com eles, andava sempre nos dezassete. O farmacêutico anui com a cabeça. No jogo das preocupações, não tenho dificuldade em atribuir uma a esta mulher. Está ansiosa com a mudança de medicamentação. Está demasiado centrada nesse problema para poder escutar-lhe outra preocupação qualquer. Saio da farmácia e entro no taxi. Comecei a ler há instantes "Viagens no Tempo no Universo de Einstein" de J. Richard Gott II, e não lhe dou atenção. Mas ao chegarmos à Rua da Conceição ele faz uma travagem brusca. Ia tentar ulttrapassar uma fileira de carros e eléctricos, em contravenção, quando reparou que o carro detrás eram dos geninhos. A explicação sobre o termo da gíria taxista solta-lhe a lingua que só estava à espera de um pretexto. Confidencia-me, estou com uma irritação enorme com a minha mulher e a minha filha. O motivo era comum: o carro. A primeira porque lhe andava com o carro mas não punha ar dos pneus, resultado, ontem a caminho de Torres Novas rebentou-se um pneu. Como se não bastasse, o porta-bagagens onde tem o pneu sobresselente estava atulhado de coisas da filha. Reproduz-me, textualmente, a conversa, os ultimatos que deu à filha para a remoção imediata daquelas traquitanas. Com a mulher foi diferente. Ela que tem uma chave do carro pediu-lhe a chave dele. Foi ao carro e depois esqueceu-se dela dentro do carro. Resultado, teve de estragar a fechadura do porta-bagagens. Aquilo estava a dar cabo do pobre homem. Foi nessa altura que olhei para ele. A cara inchada, vermelha, cheia, insuflada com aquele ódio a que nos entregamos com um inexplicável e inatingível amor. Ele sabia disso, já estava na fase da negação da irritação. Eu não posso deixar que isto me possua. Dei-lhe umas palavras de consolo e pú-lo na fila da minha galeria de personagens preocupadas. Estive quase para lhe dizer, olhe, esqueça o porta-bagagens e a fechadura, isso não vale uma preocupação. Mas isso já ele sabia. E eu tinha chegado ao cotovelo da Rua Nova do Trindade onde me costumo apear do táxi. Enquanto tirava o dinheiro do porta-moedas dou um olhar de relance à rua, passa uma mulher, podia dizer que era bonita ou esbelta, a verdade é que não reparei, era uma mulher, o exemplo que precisava, disse-lhe, olhe, pense nelas, nas mulheres, vai ver que ajuda, ontem choveu, hoje o sol está a romper, vai ver que olhar para elas é como olhar para um campo de flores. E dou-me conta de que não era este o post que queria escrever, tinha outra ideia. Queria falar sobre a forma como muitas vezes, a seguir à fase da nossa ocupação excessiva com um determinado problema, nos intranquilizamos com a obsessão em nos tranquilizarmos. Os trabalhos da desinquietação, ou não fosse a nossa natureza tão paradoxal, ao mesmo tempo que nos proporcionam o alívio necessário para as mazelas espirituais quotidianas, tornam-se muitas vezes a nossa preocupação central, tão obssessiva como qualquer outra.

3 comentários:

Anónimo disse...

:-) maria joão

D. Ester disse...

24-12 e não se ficou mesmo ali à tua frente? espero que a tenham mandado imediatamente para o hospital, senão temo bem não a voltes a ver nem nessa farmácia nem em mais nenhuma.

As preocupações são tramadas. Haja quem sacuda a água do capote.

IPQ disse...

:-)