domingo, junho 17, 2007

Uma nação é uma flor

Deu-lhe um beijo por engano. Ele sorriu, sem o retribuir. Estendeu-lhe apenas a mão, os dedos, cinco. Para que ela os sentisse a estremecer. O que se passa no fim de uma dança já não é da ordem dos pés abruptos e dóceis. Já não é poesia. Lembrou-se de cada segundo. Não se morre em vida para esquecer. Ao princípio tudo parecia a cor de um engate. Um amigo pediu-lhe. Queria dançar com a outra. Ele, mal a viu, percebeu-lhe os olhos, o lance de chão que eles alcançavam, a festa, e pensou, é ela. É ela, a bailarina de pés de fogo. Tudo parecia no entanto destinado a não ser. Primeiro foi ela que convidou um branco, que estava à deriva na pista. Depois foi o negro com cara de criança. Ele não desistiu. Pelo menos foi assim que eu percebi o seu recuo para a janela. Deixou a música acabar e dirigiu-se à pista. Ela tinha ficado momentaneamente sem par. Ele sentiu-se um lince. Num segundo já estava a fazer a festa. Era um dos seus funanás preferidos. Sorriu, cantou, dançou. Às vezes o seu corpo soltava-se, afastava-se dela uns bons dois metros mas uma teia os ligava. Via-se a olho nu. Eu vi. A coisa foi de tal forma brutal que toda a pista parou para os ver dançar. Quem são aqueles dois?, cochichavam as vozes. Eram os dois brancos. Os seus corpos explodiam como se fizessem o mais violento e festivo sexo que dois corpos entrelaçados são capazes. Como souberam que eu estava ali para contar chegavam-se a mim pessoas vindas de todos os lados. Estão a foder?, perguntavam-me. Respondia-lhes o mesmo que agora escrevo: nunca vi uma mulher a simular o orgasmo que uma dança pode ser. Aliás, não foi isso que eu disse. Respondi: nunca em tempos da vida do mundo um homem ou uma mulher podem simular a fusão que uma dança é. Uma dança verdadeira, aquela que se sobrepôe ao sexo do mundo, um bailado, um batimento cardíaco. Era indescritível o prazer, a certeza. Uma dança, quando é dança, é uma investigação ao local onde a vida se constitui. A incerteza do movimento que vem aí, a batida segura de um compasso ritmíco que reproduz a vontade. A tesão.
Podia tudo ter acabado assim, ali, e já seria um acontecimento único, excedentário. Ainda era pouco. Eu fui testemunha de que não bastava. Vi-lhes os corpos ávidos de poesia. Era preciso uma morna para ajuramentar os corpos, para os fazer de massa, barro, misturando-os. E eu nunca vi nada igual. Ele falava-lhe num sussuro que se ouvia profundamente, como ressoasse na aparelhagem da discoteca. Perguntou-lhe, de olhos fechados, ainda estamos no B.Leza?, será que morremos?, é isto morrer?, desaparecemos no colo do mundo, ou num glaciar da Patagónia, enquanto a abraçava como se os seus dedos lhe rasgassem a carne, a matéria carnal. Nunca em dias da minha vida tinha percebido que o corpo de uma mulher é como a matéria ondulante de um saxofone, disse ele dedilhando-lhe a pele, as entranhas. Era tudo em volta que tinha fugido de dimensão. O tempo tinha parado. Já não era uma dança. Era a fusão do mundo que se aproximava. Em suspenso. Já a música tinha sido outra, já eles se soltavam, lassos, quando ela lhe deu um beijo. Foi por engano, disse ele, sorrindo-lhe. Uma nação, o nascimento de uma nação, é como o crescer de uma flor. De uma paixão como não há, nunca houve.

4 comentários:

maresia disse...

são palavras como estas que me angustiam, fazem chorar, explodem no meu peito até quase me sufocarem. foi por isto que deixei de ler... não este respirar, ler ler. quero ser livre. descobri - de ler gostava, de ser livre preciso.

Mónica (em Campanhã) disse...

faz hoje precisamente 12 anos que, assim, deste modo que escreves agora, me nasceu não uma nação, mas um novo mundo.

vou guardar este post para sempre, como um presente, um festejo.

Alba disse...

Tu contas estórias de uma forma magnífica. E nós assistimos, suspensos, ao estremecimento, à sintonia, ao crescimento de uma flor ou ao nascimento de uma nação.

Luisa Bernardes disse...

Falas de três das coisas de que mais gosto: música, dançar, amar...todas interligadas, todas se completam.
Gostei do teu texto, de certa maneira senti-me espiada por dentro!
Luisa