sexta-feira, junho 15, 2007

Raízes, hastes, corola

Tenho alguma nostalgia da bonomia com que, aos vinte anos abertos, encarava a possibilidade de uma namorada minha ter tido um caso com outro homem. Ainda me lembro de uma cena que fiz no cais das colinas quando a C., no regresso de umas férias do Porto, me contou que tinha ido para a cama com um antigo namorado. Fiz uma cara horrível, disse-lhe que nunca mais a queria ver, virei a face para o sentido dos barcos do cais do sodré e no segundo seguinte estava de novo a olhá-la, disse-lhe, agora que já me zanguei és minha outra vez?
Tornei-me ciumento com a idade. O que é uma causa maior de sofrimento. Porque intelectualmente cada vez convivo pior com essa ideia de posse. Se durante os meus vinte anos a sensação de mal estar apenas se entretinha com casos pontuais em que, por algum motivo, eu não podia sair do contexto onde estava a acontecer o possível flamejar de uma atracção, e por isso eu podia tratar racionalmente da questão, hoje as coisas chegam a situações tão extremadas como ter ciúmes do ar que a outra pessoa respira.
É claro que, como qualquer pessoa, tenho algumas armas da razão para combater o meu desvairio. Uma delas é uma fractura comigo mesmo: eu não reconheço um privilégio de razão no ser que grita dentro de mim próprio, que se sacode, que grita, ela é minha, e que caparia todos os machos em seu redor. Ou que lhes tiraria os olhos, o gingar, o cheiro, até a presença, porque se uma mulher for como um homem, tudo lhe pode provocar torpor e paixão. E tesão. Este não reconhecimento é tanto de mim para mim como de mim para outra pessoa. Não consigo compreender as pessoas que pensam que por gritarem, por serem coléricas, têm razão. Falo alto, muitas vezes grito, parece que tenho uma panela de pressão a rebentar dentro de mim, mas sempre, em perda acentuada de razão.
Outra arma da razão: reconhecer-me no ser que grita dentro de mim próprio, que se sacode, que grita a sua posse. Sou eu e sou muito antigo. Comecei a odiar o mundo, o ódio começou a ganhar vez dentro de mim, há muito tempo. Já o contei aqui milhares de vezes, como muitos de nós, a minha condição de segundo filho escancarou-me a porta para esse sentimento de preterido. Quando eu cresci não se davam duas prendas aos dois filhos, não se dividiam os olhares ao meio, as ternuras. Não havia a Pais e Filhos. A minha mãe e o meu pai aprenderam a ser pais comigo e com o meu irmão. E eram de outros tempos, eles por sua vez ainda mais antigos. Amo-os muito, sempre os amei. Ao meu pai amava-o principalmente quando à tardinha na rua domingos machado esperávamos que ele voltasse da F.O.C. e entrasse na rua. Ainda hoje se me pedirem uma definição de extâse e de felicidade dou essa ideia de entardecer em que uma família se fecha sobre ela mesma, tranquilamente. À minha mãe era diferente: o meu amor por ela incluia uma admiração sem limites pela sua actividade de professora, que fui obrigado a partilhar, em muitos dos meus tempos livres. E é assim: quando o ciúme me atazana, meto a cabeça na areia, quer dizer, no meu passado e vou lá atrás ver os lugares onde comecei a odiar. Entretenho-me tanto lá que quando volto já não consigo odiar nem a mulher nem o macho que pressenti a rondar perto dela. Sou todo amor outra vez. O que é uma sensaboria.
Tornei-me ciumento com a idade. A idade nos apura e refina, não só no domínio da razão, também no da emoção, mas o modo como isso acontece é muitas vezes tempestuoso. Ora uma tempestade de areias emotivas, apaixonadas, é muito mais furiosa aos cinquenta, do que aos vinte. Se me perguntarem do que é que eu tenho mais medo na vida, seria natural que, pela forma como uso e abuso do pensamento, eu dissesse que seria alguma doença degenerativa da razão. São terríveis, impensáveis, concordo. Mas não é nelas que antevejo o inferno. Sinto que as minhas células foram educadas para um tal apego à vida que mesmo que o meu pensamento não cumpra mais razão do que uma alface, serei feliz. O terrível para mim é a degenerescência da alma, do coração, do afecto. E essa maleita terrível só pode ter uma causa: o ódio.
Anteontem deixei-me envolver com um filme belíssimo: Primavera, Verão, Outono, Inverno e Primavera. No meio de um lago, um sábio educa um jovem para o conhecimento. A certa altura conhece uma mulher, que ama. Depois do amor, vem a necessidade de separar as águas e com elas as vidas. O jovem não aceita e parte em busca da mulher. O Sábio diz-lhe que ele vai entrar no território do ódio.
Tudo isto se passava no meio de um lago propenso à sabedoria como não o são as nossas cidades, as nossas aldeias e os nossos habitats, cujas construções sublinham a possibilidade de ódio que qualquer natureza humana não pode deixar de contemplar. É uma questão que não convém deixar unicamente à arquitectura, embora esta esteja neste momento a ser o grande motor de renovação do lugar. Cansou-se dos construtores civis, da engenharia, e começa a entretecer-se com a filosofia, a própria poesia. A abrir espaços pelo meio dos caminhos cerceados do ódio. Eu sei que estou a escrever num eixo paradigmático muito restrito, muito pobre: disse ódio cinco ou seis vezes neste texto e em bom rigor poderia ter falado de outras coisas, com outras palavras. Só que todas as palavras juntas são ainda apenas uma: ódio.
Não sei se resolverei este problema alguma vez mas aceito o programa: tentar arrancar a minha capacidade de odiar, sem perder a de amar.
O ser que diz sou teu abre a porta ao ser que diz, és meu. Aceito como natural a necessidade de dádiva, de entrega. Eu não consigo perceber-me sem ela. Seria menos que uma couve, uma alforreca. Sinto que sou teu e fodo o silêncio dizendo, sou teu. Não foi por mal, acabei de estragar tudo. A linguagem torna-se objecto, e depois de longamente possuída pelo desejo, permanece lá. A palavra. Torna-se desejo de posse. E não me parece que seja um caso apenas humano. Aliás, nos animais essa passagem será mais violenta. Ou então sou eu que não os entendo. Porque nunca ouvi um cão a dizer, sou teu. Mas já o entendi muitas vezes a gritar para uma cadela, para o outro macho que a rodeava, és minha.
Talvez seja bom continuarmos aqui ao pé das palavras. Talvez neste caso, no da longa purga de um ódio, a linguagem, por mais vacilante que pareça, produza sentido.

5 comentários:

Alba disse...

Enquanto te li desejei que o teu texto continuasse, que as palavras prosseguissem o seu curso até...essa depuração ideal em que conseguimos extirpar, de nós, o ódio. Aqui encontrei sombras de grandes amores e grandes manifestações de posse. De obsessões. De desassossegos. Tanta vida, de todos nós, neste texto!

Isabela Figueiredo disse...

Li o texto ontem, mas só hoje sei o que quero dizer:

- a história que contas relativamente à tua relação com C., e à tua memória do que foi dito entre vós no Cais das Colinas é muito bonita.
É bonita demais.
Eu deveria ter tido essa bonomia aos 20 anos. Não tive. Acho que ainda não tenho. Não sei, não sei. Mas eu deveria ter sido assim. Deveria ter sido uma mulher diferente.
Um pouco de tolerância e paciência poderia ter mudado toda a minha vida.

Patricia Pereira disse...

O filme é realmente envolvente e agora que penso no filme novamente a primeira lembrança que tenho é a do silêncio do filme. gostei muito.
uma parte do teu texto fez-me lembrar uma história que o Angelo (Torres) costumava contar e que cheguei a pedir-lhe em mais do que uma ocasião para a contar, a história de 3 homens que partiam e pelo caminho cada um foi ficando com uma forma diferente de amor. claro que isto é redutor para essa história e talvez só faça sentido este comentário para quem conheça o conto, mas como ele é da tradição oral não faz muito sentido escrevê-lo aqui.
gostei muito do teu texto. assim como há tempo que gosto do que escreves.

Anónimo disse...

"Fica surdo e mudo por vezes, circunstancialmente, o coração. Furta-se encerrando-se num impenetrável silêncio, ou vai para longe. Deixa então todo o lugar às operações da mente que se movem assim sem assistência alguma, abandonadas a si mesmas. E pelo menos entre nós, os ocidentais, tão renitentes ao silêncio, as percepções convertem-se em seguida em juízo dentro de uma imperativa...

Há uma linha imperceptível, um nível a partir do qual o coração começa a sentir-se submerso. Não encontra resistência à sua volta por falta de resposta à sua incessante chamada, pois o seu pulsar é para o próprio tempo um chamar. E há a invocação silenciosa, a indizível, que parte numa direcção indefinida, não porque o seja mas por exceder toda a direcção conhecida.

E se a chamada é indizível é porque nenhuma palavra das já ditas lhe serve. O que não significa que entre as palavras que conhece não haja algumas ou uma única que seja a que busca indizivelmente. Busca um ouvido; ouvir e ser ouvido sem dar conta disso, sem distinguir. E que a sua chamada se perca na imensidão da única resposta."

Mª Zambrano, in Clareiras do Bosque

Ana Saraiva disse...

"porque se uma mulher for como um homem, tudo lhe pode provocar torpor e paixão. E tesão."

Não sei como são os homens e as mulheres, mentimos todos tanto...
Mas, não acho que essa receptividade e interesse pelas pessoas e pelas próprias sensações seja de "homem": acho que é de quem está bem vivo.