terça-feira, outubro 23, 2007
O mapa
Como sempre quando entro na Mourisca sem o Pedro, olho para todos os lados tentando vislumbrar a mesa mais interessante para ficar ali a vampirizar palavras, gestos, entoações, sugar histórias. Sou um compulsivo endrominador de histórias na vida alheia. À minha frente um casal, um homem e uma mulher, de idade, uns sessenta anos. Sento-me. Deixo-me envolver pelo meu livro, leio Hanna Arendt, um ensaio sobre a autoridade, trá-lo-ei aqui em breve, esqueço-me do meu par de eleição, sou assim, esqueço-me, abandono-me. A certa altura percebo que o casal, do qual só vejo metade da face dela e as costas do homem, reconstitui lugares de um passado que viveram há mais de quarenta anos. Apercebo-me por isso que são dois velhos amigos. Ele fala-lhe dos filhos, do lento e estuporizado rumo das vidas que os separaram. Ela está completamente centrada sobre o papel da toalha onde o homem vai desenhando ruas enquanto diz os nomes. Rua da Anchieta, Rua Ivens, Chiado, Janelas Verdes, 24 de Julho, ele vai perguntando, lembras-te, isto já foi há cinquenta anos, era eu miudo, estão os dois naquilo, ela tem uma voz doce, a voz, o olhar, os gestos, as próprias ideias, ele uma tonalidade bem calibrada, quase se diria que trabalhou com a voz. São meigos no restolhar das memórias e eu ocorre-me um outro lugar por onde tenho andado a retirar alçapões de onde brotam aquelas pequenas histórias que me constituem. Não é por acaso que me lembro de uma ideia de Arendt, "nós corremos o risco de esquecer, mas sem a recordação ficaríamos privados daquilo que dá profundidade à experiência humana". Eles saiem primeiro. Eu saio depois e dirigo-me como sempre ao meu lugar na esplanada da Graça. Já lá está a Cândida. Aponto-lhe com o olhar o casal. Ela também tinha reparado na sua doçura, nos gestos antigos com que le correra para lhe abrir a porta, com que lhe cobrira o corpo com o casaco. Eles já foram embora enquanto eu fico a acertar com a Cândida os promenores desta história: não são amantes. São amigos de há muitos anos, deitados sobre um mapa que é o corpo da cidade e que tem as suas idades, respaldadas entre colinas. Bate-nos um ar frio na cara, um vento mais forte no estio tardio que cá tem andado. Eu chamo a isto poésis.
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4 comentários:
é poésis sem dúvida mas não é promenor...flordeareia
pois não, mas por menor que seja a palavra, com ela garantirei sempre a tua presença. e curiosamente, por causa de conhecimentos comuns, falámos de ti ontem, nesta mesma esplanada. :)
Olá, Joaquim,
tem graça, a Hanna Arendt tb me acompanha às vezes. Havemos de trocar impressões sobre essa coisa da autoridade. Abçs
...que dessa esplanada se avistem, promessas de um (r)encontro em breve.
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